"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

terça-feira, 8 de julho de 2014

Felicidade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome!

Deus não me deu asas, mas me permitiu voar!

Salto inesquecível, rampa do Mirante em Vargem Alta - 06/07/2014

http://www.youtube.com/watch?v=RcriO322UoU


segunda-feira, 16 de junho de 2014

"Dois dedos de prosa"...

...e foram só “dois dedinhos de prosa”. Tão rápido quanto engolir o café já nem tão quente. Entre um pensamento e outro, a conversa ligeira e lisonjeira ao passado que ficara para trás. Expressão saudosa, lembrando-se do que ficou parado em algum lugar no tempo, sorria vez ou outra contando com alegria peripécias que viveu. Falava com ardor ímpar sobre as noites e como as via chegar ao fim; das bebidas e bebedeiras. Impregnado do perfume barato misturado ao cigarro, ao álcool, voltava para casa exalando felicidade boêmia, caminhando com passos tortos e olhos miúdos, mas que cintilavam à luz amarelo-alaranjada-incandescente dos postes encontrados rua a fora.

De volta, cabeça pesada sobre o travesseiro, encerrava ali a jornada noturna, sem sonhos, sem reflexos e reflexões, espécie de ponto final, dormia. Nada mais. Pausa. Outra lembrança. Um umidificar de olhos, quem sabe. Continuou. Mais histórias, mais intimidade com a madrugada – não falou sobre o dia; ignorou –, queria mesmo era sentir a noite, sua fervura incomum e, como se fosse possível, durante aquela narrativa, novamente apropriar-se dela, fazê-la sua amante uma vez mais. E como a amou! Imerso nas memórias que trazia à tona, mergulhava suavemente naquele mar de recordações, sem cautelas, sem receios, não temia o farfalhar das ondas, pois já as tinha superado, já as conhecia em detalhes; não ofereciam perigo... Entorpeciam-no de saudades.

Pouco a pouco, diminuiu o ritmo e como se cansado estivesse, sentou-se à beira da estrada da vida, à sombra da idade. Agora o sorriso tinha traços bem marcados, sulcados na face enrugada, deixando, assim, para sempre assinalada a fotografia, a tela que reproduzira, instantaneamente, naqueles “dois dedos de prosa”. Silencioso, voltou a si, retomando o olhar antes preso às imagens que bailavam à sua frente, enquanto saboreava de novo aqueles momentos tão adocicados. O riso foi contido e logo substituído pelo côncavo triste do envergar de lábios... Ele se dera conta de que, apesar de sua excitante projeção, tudo havia ficado para trás; todo aquele movimento de cores e perfumes ficou, caprichosamente, imóvel. Refém de si mesmo e da saudade que o invadira, preferiu desconversar, teve medo que a lágrima recém-formada caísse, evidenciando uma fragilidade que não desejava compartilhar.

Com o último gole de café, ele também se foi. Assim como fazia quando regressava das noites, repousou a cabeça, os agora alvos cabelos, sobre aquele nostálgico amontoado de reticências. Livrou-se de tudo. Empacotou a vida que queria reviver e seguiu em frente, vivendo como se não soubesse, se não quisesse, se não desejasse, se não pudesse, se não sentisse. Escolheu enganar-se.

...

Talvez doesse menos... Ou, talvez, doesse ainda mais.


Valquiria Rigon Volpato
16 de junho de 2014

(ainda sem título. Talvez nunca o tenha)

"...aqui dentro, dentro de mim, ainda é noite."

...amanheceu. É possível que haja luz lá fora. É possível que haja flores colorindo os cenários. É possível que meninos estejam jogando futebol na rua, marcando gols entre traves de Havaianas. É possível que os passarinhos estejam construindo seus ninhos com gravetos nos bicos, espertos, arquitetos, engenheiros do ar! É possível que, em algumas cozinhas, mães estejam assando bolos de chocolate e enquanto o sabor em forma de cheiro inebria toda a casa, elas cantem ao som da música de suas épocas, músicas que só se escutam nas AMs matinais... É possível que amigos estejam conversando sobre qualquer banalidade que os faça sorrir, sentados nos bancos da praça, onde os pombos os rodeiam à expectativa de migalhas, farelos do pão que seguram envolto a um papel cinza salpicado de preto, papel esse que ganharam na padaria, momentos antes, das mãos do Silva, o José da Silva, nordestino, sujeito de caráter, de sorriso fácil, de vida difícil, de lutas constantes, de amigos incontáveis... Um típico brasileiro. É possível que casais caminhem de mãos dadas e que, sem palavras, um esteja dizendo ao outro como é bom estarem juntos. É possível que, lá fora, a vida aconteça de tantas e tantas formas, com tantas cores, sabores e sons... É possível... e embora acredite em todas as muitas possibilidades, apesar de ter amanhecido lá fora... aqui dentro, dentro de mim, ainda é noite.

(ainda sem título. Talvez nunca o tenha).

Valquiria Rigon Volpato
14 de junho de 2014