"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O homem, a máquina e o sapato

Comecei a observá-lo ao longe; certamente, não me viu. Fiquei algum tempo prestando atenção nele, na máquina de costura e nos óculos, em acrílico, usados para proteger os olhos. Engraçado! A máquina fazia muito barulho, nem parecia máquina de costura, parecia a máquina do trem, o mesmo que ouvia passar quando visitava minhas primas, em Cobiça. Minha meninice, à época, não abafou a lembrança vívida daquele som.

Observando aquele homem, pertinho da rua, com sua máquina de costura e óculos de proteção… Ah, já ia me esquecendo, ele costurava um sapato! E parecia fazer um excelente trabalho, estava tão atento na costura, nos detalhes. Pensei se ele estava ali somente por causa do sapato; quase me esqueci, era uma sapataria, por isso ele costurava o sapato… Mas, ante a cena, quem daria atenção à sapataria?! Eu, por exemplo, estava fixa nele, nos óculos, na máquina, embora a sapataria estivesse ali. Talvez, se houvesse algum sapato para consertar, precisando de uma fivela ou “saltinho” – pra não fazer aquele toc-toc desagradável, reboando quando a gente passa por corredores vazios, silenciosos –, e todos colocam a cabeça fora das salas apenas pra ver quem está passando, ou, então, já sabendo a quem pertence o sapato barulhento, olham-se e exclamam: “escuta, lá vai ela passando pelo corredor!”.

Continuei a observar o homem, cuidadoso em seu ofício, e até quis um olhar dele para mim, pois, de repente, ele (ou eu) precisássemos disso, de alguém que prestasse atenção. A gente deveria prestar um pouco mais de atenção naquilo que os outros fazem por nós e o que nós podemos fazer pelos outros. Enquanto o observava, fiquei pensando nessas coisas, nas importâncias não dadas… No meu ofício de observar, no ofício dele de costurar, no ofício de tanta gente e em quanta coisa acontece e ninguém vê.

A história do sapateiro, costurando um sapato, na sapataria, pertinho da rua, usando óculos de proteção… Necessários?! Achei esquisito, para mim não fez sentido, mas, para ele, certamente; queria proteger os olhos e não o condeno por isso, também gostaria de proteger os meus, protegê-los da maldade, tanto e tanto, a ponto de não prestar atenção nas coisas ruins, até porque tem tanta coisa boa passando despercebida…

Quero, apenas, seguir em frente, costurando, não os meus sapatos, mas os passos com os quais caminho pela vida. Meus olhos não estão tão bem protegidos quanto os dele; nenhuma fagulha, de linha ou agulha, vai atingir aqueles olhos. Espero que outros o vejam costurando e saibam: ali existe um sapateiro, uma sapataria, pertinho da rua, quase na calçada!

Já ia me esquecendo: atrás dele, na parede, tem um nome – Luiz; “seu Luiz”. Permito-me chamá-lo assim… “seu Luiz”. Dia desses passarei por lá, não porque tenho um sapato a ser consertado, mas, para dizer a ele o quanto observei, dar a ele um abraço, um sorriso e, ao final, dizer: “Isso mesmo, seu Luiz, continue costurando, costure sapatos, costure essa prosa, costure a vida, emende sonhos, afivele corações, porque, é assim mesmo que se faz…”.


Valquiria Rigon Volpato
Agosto de 2018

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Nunca me pareceu vício


O cigarro era um amigo. Entre os dedos da mão direita, levando-o à boca com precisão cirúrgica, tragava e, então, jogava fora a fumaça branca. Repetia o gesto incontáveis vezes durante o dia. Entre um cigarro e outro, cumprimentava, com poucos movimentos, quem por ele passava. Seu ponto favorito? Entre duas paredes de um muro velho, decoradas com pichações maliciosas. Aparentava cansaço. Não! Desânimo. Rabugice. Das poucas vezes que passei por ele, desviei o olhar, não queria o encontro, não me sentia confortável, embora, passos mais tarde, curvasse a cabeça de modo a vê-lo, pela última vez, antes de curvar a esquina.

Quarta-feira, dia gris, uma fina camada de poeira d'água caía do céu. Da janela reparei a fumaça branca, virei cautelosamente o olhar… Ele. Senti um arrepio mais frio do que o ar daquele dia percorrendo a espinha, engoli saliva, gosto amargo. Estendi a mão e apanhei o copo com água, um gole após o outro, fazia força para engolir o nó na garganta e dissolver os pensamentos que me atravessaram. Fechei os olhos, sacudi a cabeça, voltei ao trabalho, ainda sem entender o misto de medo e interesse; preferi fechar a janela, entretanto, não havia mais como anular a imagem: da espessa fumaça branca saltava o azul-jeans da jaqueta, matizada pelo grisalho, contornos, para mim, já não esquecíveis.

O Sol retornou na manhã seguinte, revelou rostos afastados pela chuva e escondeu outros, inclusive o dele… Não estava entre as paredes, não havia fumaça, nem azul ou grisalho. Caminhei em direção à janela, sentindo o arfar da respiração inquieta, uma ligeira ansiedade fazendo suar os pés, busquei com avidez felina em caça a cena que tanto me capturava, mas… nada. Vazio perturbador. Sentei-me decidida a manter a calma, respirei uma, duas, três vezes…

Noutro dia, noutro e outro, apenas o espaço em branco se pronunciou. Final da tarde, buscando remontar qualquer parte daquela cena, fui ao encontro das paredes, das pichações mal erotizadas; permaneci imóvel, enquanto o cheiro sufocante da fumaça recompunha a imagem e amargava minha boca, projetando saliva que engolia junto ao nó da garganta.

Como sopro do vento ao pé do ouvido eriçando pelos, aproximou-se e disse: “você o conhecia? Há três semanas teve um ataque do coração, infartou. Fumava além da conta, um viciado”. E foi então, naquele instante, que passei a compreendê-lo. Nunca me pareceu vício; causa mortis: solidão.


Valquiria Rigon Volpato
10 de agosto de 2018


quinta-feira, 26 de julho de 2018

Encontros não marcados


Madrugadas, aparentemente silenciosas, são verdadeiras passarelas do samba, cobertas por foliões em plena agitação, serpenteando à noite, colorindo o sólido preto, acendendo luzes desvairadas que saltitam alegres pelas mentes em ebulição. Foram, assim, nas madrugadas, os encontros não marcados que tivemos…

Éramos, completamente, desconhecidos; olhares não cruzados, sorrisos não trocados, estranhos até aquele momento. Seguíamos caminhos tão distintos que, pensar aquele encontro, seria loucura; no entanto, aconteceu. Atenta às palavras, tratei com doçura cada uma de suas intenções, sem permitir qualquer antecipado julgamento capaz de roubar a emoção do primeiro contato. Li, reli, interpretei, mas, especialmente, consenti; deixei ser quem quis. Tal qual Arlequim, impulsionado pelas marchinhas carnavalescas, fui bailando em seus contornos, nem sempre os mais apropriados para o tom da música, contudo, sem regras para os passos daquela dança. Tão livres e desimpedidos aqueles movimentos, uma deliciosa conquista permeada pela liberdade que não cessou nas primeiras palavras, nem se intimidou com a ligeireza do tempo - insistente em passar, insistente em encurtar nossos encontros, insistente em ser o regulador mais tirano das oportunas horas das, já, nossas madrugadas.

A frequência nos tornou mais íntimos, oferecendo-nos, em consequência, algo mais terno, porém, não menos surpreendente, uma vez que, a cada novo encontro, descobríamos como melhor nos comunicar. Eu cá, eles lá. Todos eles. Com ou sem nomes, com pseudônimos ou autênticos, mas, sempre emocionados, traziam suas verdades à tona, muitas vezes, cruas e nuas. Ainda que apenas soubessem meu nome, eles me vinham, reais e desejosos por algo que os chancelassem. Não imaginavam que, por estarem ali, suas aprovações já estavam postas. Não, não busquei neles perfeição, nem escorreita formação gramatical, rígida, militarizada – que os poderia engessar. Quando os encontrava, nas loucas madrugadas, queria que me fizessem emocionar e, quanto mais as palavras me tocavam, mais próxima deles me faziam. Era, então, a euforia necessária para estabelecer a relação já existente, entretanto, ainda sem o liame indispensável para transformar o “eu-eles” em nós.

Não os escolhi. Eles me escolheram. Ouso dizer, ainda, que não nos encontramos, mas, eles me encontraram; aprendi a casualidade sem máscaras, a compreensão não taxativa… aprendi a magnitude de sentir sem estilizar, ser essência para enxergar outras essências por aí. Foram algumas dezenas de encontros, com sabores únicos, todos não marcados, nas madrugadas febris das mentes inquietas; eu cá, eles lá, sem nunca termos nos tocado, embora, tivéssemos, por inúmeras vezes, feito amor com palavras.


(Sobre a experiência de ser uma das curadoras do projeto Pré-Bienal Rubem Braga 2018, “Livro Virtual de Crônicas e Outros Textos – Nas Asas da Borboleta Amarela”)


25 de julho de 2018
Valquiria Rigon Volpato

terça-feira, 27 de março de 2018

Sobre cabelos e outras voltas que a vida dá...



Lembro-me bem de quando tinha 12 anos. 12 não, talvez um pouco menos. 10 anos, isso. Era aquele tipo de criança miudinha – a sensação é de que tenho o mesmo tamanho desde então – nunca fui do tipo magra, era mais o que minha avó dizia: “tem saúde, essa menina!”. Uma criança, com coisas de criança, mas com certas insatisfações tão severas, que, às vezes, nem parecia ser criança. Sabe o cabelo enrolado? Ah, que tristeza que era aquilo… Estar diante do espelho, ver os cabelos rebeldes, sem limites, como se estivessem em plena revolução, despertava a vontade de entrar, literalmente, em guerra contra aqueles fios indomáveis. É… e virou guerra MESMO!

Nas primeiras batalhas, obriguei minha mãe a ser aliada de fronte; olhei para ela, decidida, e disse: “vamos alisar”. Decisão que parecia muito corajosa para uma menina de 12 anos, agora sim, já com 12 anos e insatisfações ainda maiores. Começamos a saga da compra de produtos e idas aos salões de beleza, mas nada parecia adiantar muito, porque, em vez de alisar, apenas causava mais furor aos fios, que em ato de contra-ataque, mostravam-se ainda mais selvagens. Diante do espelho, passava horas arrumando meios de esconder quem ele (o cabelo) realmente era, torcendo para dormir crespa / cacheada e acordar comportada / lisa.

Teve um dia, dia daqueles em que a batalha parecia perdida, ouvi conselhos de madrinha. Dizia ela, entusiasmada: “Tem jeito. No salão da Neinha! Ela sabe fazer um negócio diferente, que você nem precisa gastar com produto. Ela só escova seu cabelo e pronto. Lisinho lisinho”. O salão da Neinha, então, passou a ser um objetivo a ser alcançado. Coitada de mamãe, que agora precisava encontrar meios de me levar naquele santuário do cabelo liso e ainda pagar pelo trabalho de Neinha. Esperei dia especial, casamento de uma prima e marquei para fazer o procedimento. Seria mágico sair de lá com todos os fiozinhos no lugar e arrasar na festa! Lá fomos nós. Neinha não era bem o que eu imaginava, mas, ainda confiante em seu trabalho, deixei a “mágica” acontecer. Naquela época, o serviço ficava por R$ 7,00 – sim, houve um tempo em que com R$ 7,00 se podia fazer escova no cabelo. Quando Neinha disse: “Pronto. Tá linda”, olhei-me no espelho e levei um baita susto… O cabelo que eu imaginava era liso, não aquilo… aquela montanha de cabelos desajeitados. Os olhos lacrimejaram, falei baixinho para minha mãe: “vamos embora”. Cheguei em casa, desesperada, e corri para debaixo do chuveiro, sem pensar por um minuto que o trabalho de Neinha e o dinheiro de meus pais iriam, literalmente, para o ralo.

O tempo foi passando e nada dava jeito no cabelo, tão pouco em minhas insatisfações… Gastei anos de adolescência e juventude pensando em como poderia ser diferente, como faria para obrigar meu cabelo a deixar de ser quem ele era. Procedimentos químicos que o agrediram tanto, a ponto de quase matá-lo, porque era isso que eu fazia: tentava matar sua essência. Já adulta, pouco tempo atrás, fui ao Rio de Janeiro com uma amiga, ela queria cortar os cabelos, eu apenas a acompanharia, mas, sei lá o que me deu, enchi-me de nova coragem, e resolvi: “quero cortar”. E cortei muito. Foi o primeiro passo; pela primeira vez me rendi, hasteei bandeira branca… meu cabelo, finalmente, havia vencido a guerra! Parei de lutar e desde então eu o deixei ser quem sempre foi, quem sempre quis ser.

Dia desses, na fila do banco, lembrei de toda a trajetória de lutas contra meu cabelo, das angústias, insatisfações e, então, refleti:

Se eu soubesse, aos 12 anos, que aos 33 minhas expectativas em relação à vida seriam tão diferentes;
Se eu soubesse, aos 12 anos, que aos 33 as insatisfações existiriam, mas seriam outras;
Se eu soubesse, aos 12 anos, que aos 33 deixaria que meu cabelo fosse exatamente como era aos 12…
Ah, se eu soubesse… Se eu soubesse, aos 12, por tudo o que passaria até chegar aos 33, certamente não mudaria nada do que vivi, faria tudo do mesmo jeito... E seria (como sou) feliz!!! por ter chegado aos 33 permitindo que meu cabelo seja livre... me permitindo, finalmente, ser quem SOU.



23 de março de 2018
Valquiria Rigon Volpato