"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

quinta-feira, 13 de maio de 2021

ODE À CULTURA POPULAR

“...quando a batida no couro do tambor respondeu à primeira estrofe da cantoria, veio vindo, de dentro, a vibração; sangue pulsando e a certeza de que havia ali identidade. Era o mesmo DNA. Batendo palmas, a roda se mantinha, calor provocado pela emoção aquecendo a noite fria daquele 13 de Maio”. 

Brasil, país de tantos tons, nasceu miscigenado, injetou nas veias de seus filhos a diversidade e acertou na composição. Vovó Aparecida contava que quando foi encontrada estava debaixo de uma sombrinha, num pasto de fazenda, rodeada pelo gado, disse que o capataz pegou a cesta e levou-a para a sede da fazenda, pra ser criada. Vovó era preta. Já o vovô Antônio, de olho claro, veio marcado pela longa travessia do Atlântico – navio que deixaria a Itália para ancorar no Brasil. Vovô era branco. Num país de misturas, somos resultados de um todo que se explica, mas nem sempre se entende; caminhos atravessados pelo amor, mas também pela dor.

Em 1888, naquele 13 de Maio, a notícia era de que a escravidão deixaria de existir, no entanto, 133 anos mais tarde, a quantas correntes estamos presos? Os grilhões da antiga – e moderna – escravidão ainda impedem homens e mulheres de serem, definitivamente, livres… e, pelas amarras de outrora, há danos a serem reparados.

“...havia espécie diferente de alegria naquele momento. Cheguei, reverenciei o templo, a simbologia que carrega, e aguardei, paciente, o início da reza. O som do tambor rompeu o silêncio concretado das paredes daquela igreja e se fizeram preces em festa, com cores, danças, flores; orações assuntas aos céus”.

As compensações legais arquitetadas para tentar minimizar os impactos da violência racial não são suficientes para recompor, refazer a história, entretanto possuem a nobre missão de demonstrar que há o reconhecimento a quem verteu sangue, injustamente, para suprir os caprichos de uma sociedade cuja “época lhes permitia” tal comportamento. Embora haja, neste texto, o desejo de manter no passado o preconceito, como se, exatamente, ao tempo estivesse entrelaçado, pesaroso admitir que não, notar no agora a invasão da ignorância – a mesma foice mutiladora, capaz de aleijar homens e sonhos.

“...por volta de meio dia, Sol quente, na rua estreita de paralelepípedos, avistei-os, uns vinte ou trinta, cantando com voz forte, vestidos de branco e com espécie de estacas nas mãos, vinham subindo a ladeira. Pararam em filas, uns em frente aos outros, ergueram os pedaços de madeira e iniciaram o que me pareceu ser uma dança. Só mais tarde viria entender que era um encontro de “jornaleiros”, batendo suas flechas, rendendo homenagens a São Sebastião”.

Existe uma lacuna na compreensão da diversidade, do que é plural, sobretudo quando observadas em pessoas circunscritas num mesmo espaço geográfico, caracterizada por costumes, hábitos sociais ou crenças que, naturalmente, variam de uma pessoa para outra. No meio do caminho da diversidade tem uma pedra – a intolerância – difícil de ser removida, porque sua base está calcada no individualismo, cuja plataforma é o desrespeito.

Covardia é não se permitir a reflexão, seguindo, sem freios, o discurso cego do ódio, sem a compreensão demandada pela pluralidade que cerca o ser humano. Tendo votado em si mesmo, o homem elegeu-se dono da verdade, cujo poder – emanado de si para si – é deter a capacidade de dizer sobre o que é certo ou errado e, assim, julgar e condenar aquilo que, sendo diferente, afeta suas mais profundas inseguranças. A fortaleza invisível que impede o pensar, também se ergue, em muros altos, distanciando o homem de sua própria identidade.

“...a gente se ajuntou no terreiro, porque era dia de festa. Tinha uma fogueira grande, não dava pra chegar tão perto, por causa do calor, só os tambores estavam mais próximos ao fogo – pra esticar o couro. Naquela noite estavam todos em Monte Alegre, e foi quando vi os Caxambus juntos pela primeira vez. Era uma roda densa, animada, cheia de vida; ali, batendo palmas, ficava olhando, enfeitiçada, até que me chamaram pra entrar na roda, no meio dela, e dançar. Não sei explicar, mas a sensação era de liberdade, como se ali, durante aquele movimento, repetido por centenas de anos, o 13 de Maio fizesse sentido... Ali, na roda de Caxambu, experimentei o verdadeiro significado da li-ber-da-de”.


(Cachoeiro de Itapemirim, ES, 13 de maio de 2021.

Valquiria Rigon Volpato)