"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

domingo, 5 de dezembro de 2021

"Esse não é um texto sobre saudade, é sobre ser e estar presente..."

...ela costuma ficar por ali, no quintal de casa, estendendo roupas no varal, dando milho às galinhas, molhando as verduras na horta ou só sentada mesmo na escada – nos dois primeiros degraus, pertinho do terreiro – descansando ou chupando uma laranja. De casa é perto, vou até ela uma ou duas vezes durante o dia, normalmente, pra gente papear, falar da vida cotidiana na roça, dos sonhos – meus e dela, claro – planejar viagens, falar das paquerinhas; ela me ouve com atenção, não importa se está lavando a louça ou fazendo pão, ela não perde o foco. É rápido: café tá pronto, cheiroso, o “pão de casa” quentinho e a manteiga fica toda derretida. Se o papo estava bom antes, agora é que não tem fim! Quando o relógio aponta as três da tarde, ela liga o rádio na Diocesana pra ouvir a oração, depois abaixa o volume pra não atrapalhar a conversa e a gente continua. Quando chega visita – eu acho que a visita chega naquela hora, porque sabe que tem pão quente e café fresquinho – ela logo convida pra entrar, sentar e a gente muda de assunto, interage, quando vê é hora da janta… Despeço dela, volto pra casa; que tarde boa!

Domingo de manhã a gente acorda cedo pra ir à igreja. Vamos todos no fusca 1973 do papai. Legal é que quando abro os olhos, ela já está na cozinha esperando pra pegar carona, ela faz questão de ir à igreja, cantar aquilo que sabe de cor e ler o que aprendeu, quase sozinha, num orgulho danado de saber o que está escrito nos livros que usamos na missa. Na igreja o lugar dela é certo: cantinho do segundo banco à direita! É lugar cativo, tanto que ninguém se senta ali e quando um visitante comete essa “gafe”, logo alguém avisa: “não senta aí, não, porque esse lugar é da Dona Zelinda”.

Quando termina a oração, ela sai, fica ali na porta da igreja cumprimentando os amigos, vizinhos, contando histórias. Eu me aproximo, ela me abraça forte e convida para tomar café com ela, sempre me seduzindo com a frase: “o pão tá quentinho, fiz agora de manhã”. A gente entra no fusca, papai nos deixa na casa dela, e vamos nós pro café com pão de casa e manteiga derretida. Não demora muito e a família começa a se reunir, chegam tios, primos, amigos e a cozinha vai ficando pequena pra acolher tanta gente; a conversa se expande e só é interrompida pelos risos e brincadeiras; pouco a pouco, o cheiro do café vai sendo substituído pelo da “minestra” feita com macarrão de casa, coisa que ela faz questão de fazer. Gosto de ajudar ela a abrir a massa do macarrão – antes era no rolo de madeira, agora tem o “cilindro” fixado à mesa. Que modernidade! – passar fubá pra não grudar e, enquanto isso, sentir aquele cheiro bom de família reunida. O almoço não pode demorar, ela gosta de servir antes do meio dia; coloca as panelas e travessas sobre a mesa, logo a fila se forma e cada um acha um canto da casa pra apoiar o prato. Silêncio. Único momento em que todos ficam quietos é quando estão comendo!

Nem bem termina o almoço já tem água fervendo pra fazer mais café. Um lava a louça, outro vai secando com o pano de prato, guardando aquele monte de vasilhas, eu costumo varrer o chão da cozinha e passar pano, porque ela é exigente com limpeza, não gosta de gordura e água no chão. Tudo arrumadinho e limpo, a gente vai pra varanda – da frente ou da sala – ela deita, escora a cabeça com o antebraço e mão esquerda. Novamente, a família reunida pra continuar o bate papo após o almoço. Deito ao lado dela e fico olhando o céu; as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil, fantasiando a velocidade em que a Terra gira.

Faz dez anos da última vez que a vi. Dez anos do pão, do café, das conversas, da carona de fusca para ir à missa; acho que hoje sei, não em números, mas em sensações o quão rápido a Terra gira... Não consigo falar dela no passado, porque não é lá que ela está, ela está aqui junto de toda a história a ser lembrada, no amor imenso que sempre demonstrou por todos e nas sementes desses mesmo amor que deixou plantada em nós. Esse não é um texto sobre saudade, é sobre ser e estar presente; vó Zelinda, PRESENTE!

"...as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil, fantasiando a velocidade em que a Terra gira"

"...as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil,  fantasiando a velocidade em que a Terra gira"


Valquiria Rigon Volpato
4 de dezembro de 2021.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

O sertão que há em nós

"Em beiras de ruas de chão batido, enfileirados desenham escadas humanas, pequenas vidas severinas de severidades que se aproximam, vão no vão de seus anseios desejar o mínimo – arroz, feijão – a fome, se vai embora, deixa solidão; ela é constante companhia. Dói o estômago vazio, dói mais o pouco raciocínio de quem, tendo a chance, não resolve problemas, apenas fomenta a confusão." 


Aridez de sentimentos em terra rachada de corações-torrões, sangra os calcanhares dos pés cansados, desses andarilhos, tantas vezes, desanimados em busca de sua própria redenção. Ouvi dizer que têm sede de justiça, cuja fonte anda seca; de cuias nas mãos, imploram: dignidade! Gritam no deserto – não têm eco, não têm representatividade. Em beiras de ruas de chão batido, enfileirados desenham escadas humanas, pequenas vidas severinas de severidades que se aproximam, vão no vão de seus anseios desejar o mínimo – arroz, feijão – a fome, se vai embora, deixa solidão; ela é constante companhia. Dói o estômago vazio, dói mais o pouco raciocínio de quem, tendo a chance, não resolve problemas, apenas fomenta a confusão.

Sustento mesmo vem do xique-xique, que ensopado em choro, mantém o corpo de pé: levanta cedo, vai pra lida, ergue a cabeça, sobrevive e volta pra dormir. Em casa, a noite soturna encobre os pedintes olhares, melhor assim – deixar acreditar que, quando os olhos não podem ver, o coração finge se enganar. Chique mesmo são os champanhes e canapés, os brindes com rapés, essas plantas que não nascem no sertão – compradas a preços altos, pagas em cartão, dinheiro que desce pelo ralo, diferente da água que não irriga mais o chão.

Esperança é item raro, anda caro no mercado da ilusão, parece chuva anunciada quando o amontoado de cirros mancham o azul do céu; expectativa – essa sim! – se cria tal qual erva daninha que sufoca a plantação. Mil léguas em pés descalços, enfrentando os percalços na certeza de resistir – mais a frente ainda tem poço d’onde vem o pouco pra beber – lata d’água na cabeça e fé – fita o caminho, porque mesmo sozinho, não se pode desistir.

Tem sertão por aí que não é no nordeste, mas que vai de leste a oeste, norte, sul, sudeste, tem escassez no homem, seca atroz dentro de nós – o homem bicho, carcará que pega, mata e come, nem sempre pra matar a fome, numa batalha desleal de exaltação do próprio nome. No entanto, na aragem do coração sertanejo o solo é fértil, a semente do amor germina forte, porque, para quem não foge à luta, nunca será sorte, sempre será coragem!


(Cachoeiro de Itapemirim - ES, 29 de setembro de 2021

Valquiria Rigon Volpato)

quinta-feira, 13 de maio de 2021

ODE À CULTURA POPULAR

“...quando a batida no couro do tambor respondeu à primeira estrofe da cantoria, veio vindo, de dentro, a vibração; sangue pulsando e a certeza de que havia ali identidade. Era o mesmo DNA. Batendo palmas, a roda se mantinha, calor provocado pela emoção aquecendo a noite fria daquele 13 de Maio”. 

Brasil, país de tantos tons, nasceu miscigenado, injetou nas veias de seus filhos a diversidade e acertou na composição. Vovó Aparecida contava que quando foi encontrada estava debaixo de uma sombrinha, num pasto de fazenda, rodeada pelo gado, disse que o capataz pegou a cesta e levou-a para a sede da fazenda, pra ser criada. Vovó era preta. Já o vovô Antônio, de olho claro, veio marcado pela longa travessia do Atlântico – navio que deixaria a Itália para ancorar no Brasil. Vovô era branco. Num país de misturas, somos resultados de um todo que se explica, mas nem sempre se entende; caminhos atravessados pelo amor, mas também pela dor.

Em 1888, naquele 13 de Maio, a notícia era de que a escravidão deixaria de existir, no entanto, 133 anos mais tarde, a quantas correntes estamos presos? Os grilhões da antiga – e moderna – escravidão ainda impedem homens e mulheres de serem, definitivamente, livres… e, pelas amarras de outrora, há danos a serem reparados.

“...havia espécie diferente de alegria naquele momento. Cheguei, reverenciei o templo, a simbologia que carrega, e aguardei, paciente, o início da reza. O som do tambor rompeu o silêncio concretado das paredes daquela igreja e se fizeram preces em festa, com cores, danças, flores; orações assuntas aos céus”.

As compensações legais arquitetadas para tentar minimizar os impactos da violência racial não são suficientes para recompor, refazer a história, entretanto possuem a nobre missão de demonstrar que há o reconhecimento a quem verteu sangue, injustamente, para suprir os caprichos de uma sociedade cuja “época lhes permitia” tal comportamento. Embora haja, neste texto, o desejo de manter no passado o preconceito, como se, exatamente, ao tempo estivesse entrelaçado, pesaroso admitir que não, notar no agora a invasão da ignorância – a mesma foice mutiladora, capaz de aleijar homens e sonhos.

“...por volta de meio dia, Sol quente, na rua estreita de paralelepípedos, avistei-os, uns vinte ou trinta, cantando com voz forte, vestidos de branco e com espécie de estacas nas mãos, vinham subindo a ladeira. Pararam em filas, uns em frente aos outros, ergueram os pedaços de madeira e iniciaram o que me pareceu ser uma dança. Só mais tarde viria entender que era um encontro de “jornaleiros”, batendo suas flechas, rendendo homenagens a São Sebastião”.

Existe uma lacuna na compreensão da diversidade, do que é plural, sobretudo quando observadas em pessoas circunscritas num mesmo espaço geográfico, caracterizada por costumes, hábitos sociais ou crenças que, naturalmente, variam de uma pessoa para outra. No meio do caminho da diversidade tem uma pedra – a intolerância – difícil de ser removida, porque sua base está calcada no individualismo, cuja plataforma é o desrespeito.

Covardia é não se permitir a reflexão, seguindo, sem freios, o discurso cego do ódio, sem a compreensão demandada pela pluralidade que cerca o ser humano. Tendo votado em si mesmo, o homem elegeu-se dono da verdade, cujo poder – emanado de si para si – é deter a capacidade de dizer sobre o que é certo ou errado e, assim, julgar e condenar aquilo que, sendo diferente, afeta suas mais profundas inseguranças. A fortaleza invisível que impede o pensar, também se ergue, em muros altos, distanciando o homem de sua própria identidade.

“...a gente se ajuntou no terreiro, porque era dia de festa. Tinha uma fogueira grande, não dava pra chegar tão perto, por causa do calor, só os tambores estavam mais próximos ao fogo – pra esticar o couro. Naquela noite estavam todos em Monte Alegre, e foi quando vi os Caxambus juntos pela primeira vez. Era uma roda densa, animada, cheia de vida; ali, batendo palmas, ficava olhando, enfeitiçada, até que me chamaram pra entrar na roda, no meio dela, e dançar. Não sei explicar, mas a sensação era de liberdade, como se ali, durante aquele movimento, repetido por centenas de anos, o 13 de Maio fizesse sentido... Ali, na roda de Caxambu, experimentei o verdadeiro significado da li-ber-da-de”.


(Cachoeiro de Itapemirim, ES, 13 de maio de 2021.

Valquiria Rigon Volpato)