"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Olhou se não tem algum furo?!

Ensinamentos de mãe a gente vai levando pela vida inteira, ao menos levo os que ela me  trouxe – e ainda traz – apesar de alguns, vez ou outra, não fazerem tanto sentido assim para mim. Para a reflexão de hoje, vou me ater a dois conselhos – naquela época eram ordens – recebidas de mamãe, quase que diariamente, quando garotinha.



Como se fosse ontem, lembro de minha mãe fazendo a seguinte orientação quando estávamos prestes a sair de casa – para passeio ou missa, ficar na casa de alguma tia – não importava o evento: “você vestiu a calcinha certa? Olhou se não tem algum furo?”. E a explicação vinha em seguida: “porque se acontecer alguma coisa e tiver que te levar no médico, tem que estar com a roupa boa”. Hoje, avaliando friamente, me pergunto se mamãe estaria aflita com um possível acidente ou com a vergonha de alguém ver a filha dela com uma calcinha furada?! De certo ela pensava em ambas as situações!

Outra recomendação que não esqueço – essa faz mais sentido, inclusive atualmente – é de não se sentar em qualquer vaso sanitário para fazer xixi; o famoso fazer xixi em posição de isometria para não permitir contato entre a pele e a louça da privada, claramente, decorria da preocupação de, no sentar-se, contrair algum tipo de doença. Nos anos 90, quando o ensinamento de urinar de cócoras, não muita abaixada a ponto de encostar na louça, nem tão elevada, a fim de permitir que o líquido escorresse pelas pernas, a Covid19 era mera cena de ficção cinematográfica; o uso do álcool 70%, esse aniquilador de vírus, bactérias e peles era incipiente. Todavia, minha sábia mãe, talvez guardando apenas o temor pela contaminação e não se atentando para cálculos matemáticos, deixou passar despercebido que sua filha, já naquela época, media um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura, o que me impedia de cumprir sua ordem com excelência, uma vez que, para além dos meus esforços, estava a limitação física; com o vaso sanitário a quarenta e cinco centímetros de altura, das duas uma: ou a parte de trás das coxas esbarrava no que mamãe pensava – com razão – ser um potencial transmissor de doenças ou o xixi molhava um pouquinho da parte interna das coxas. Soluções tais como fazer um “forrinho” de papel sobre o vaso eram ainda piores do que o forçoso treino de quadríceps em banheiros públicos. Um grande dilema para mim naquele tempo!

Anos mais tarde – quando comecei a pagar por minhas calcinhas – compreendi que mamãe tinha razão, não necessariamente, sobre a preocupação em alguém ver que vestia uma calcinha furada, mas sobre cuidar de mim; era auto cuidado o que ela estava me ensinando. Não apenas sobre ter uma boa apresentação social, mas também sobre investir em mim. Quanto à problemática do fazer xixi, novamente entendi que ela me ensinava sobre cuidar. Dia desses estive em São Paulo num compromisso de trabalho e, inevitavelmente, passei por banheiros públicos – passo por eles todos os dias – entretanto, à minha maneira, aplico o que mamãe ensinou: munida de álcool 70%, lencinhos umedecidos ou toalhas de papel, com orgulho, posso dizer que não houve vaso sanitário não esterilizado antes do uso, tão pouco deixei de fazê-lo após mim.

Na cabeça daquela garotinha de cinco, seis anos, não parecia fazer sentido os conselhos de sua mãe, foi somente com o tempo, experiências e percepções que compreendi a riqueza do que ela me trouxe; que cuidar de mim e do outro, do lugar comum, proporcionar que alguém cuja mãe não tenha recomendado a posição isométrica para fazer xixi – ou que sequer teve mãe para fazê-lo – possa se sentar, livremente, num vaso sanitário e receber de mim – mesmo sem saber – todo carinho e zelo que recebi de minha mãe, vai muito além de escolher a melhor calcinha ou não esbarrar na privada suja.

Clarice, a Lispector, disse: “até onde posso, vou deixando o melhor de mim. Se alguém não viu, foi porque não me sentiu com o coração.” Valquiria, a Volpato, gostaria de acrescentar: “ou porque não usou o banheiro depois de mim”.


20 de dezembro de 2023
Valquiria Rigon Volpato.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Aqueles sábados...

..."ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins".


Sábado, 25 de janeiro de 2020. Em casa as notícias chegavam por toda parte; no WhatsApp os grupos encaminhavam vídeos, fotos e áudios que, ao serem baixados, davam conta da tragédia. À medida com que as águas do Itapemirim inundavam a cidade, as galerias de celulares transbordavam aqueles arquivos de uma das notícias mais tristes já recebidas pelos cachoeirenses: o Rio Itapemirim, manso, de pequenas quedas entre pedras, havia se transformado com ferocidade inimaginável! Os doze metros acima de seu nível varreram o centro da cidade como nunca – sem qualquer exagero – se tinha visto.

Domingo, 26 de janeiro de 2020. Por volta das quatorze horas, após uma longa noite de angústia, o Itapemirim parecia se reencontrar em suas margens. No grupo de trabalho nos organizamos para a missão, que apenas mais tarde, entenderíamos seu verdadeiro significado; calcei botas emborrachadas, calça, uma blusa mais surrada, amarrei os cabelos em coque e, na companhia de minha irmã e cunhado, rumamos até o Palácio Bernardino Monteiro. Nosso carro estava limitado a algumas ruas da parte mais alta, descemos a pé e, de imediato, nos deparamos com a Praça Jerônimo Monteiro encoberta com tonelada de lama, restos de galhos e mobílias. Caos. Quando a chave girou para abrir a porta do Bernardino Monteiro ainda não poderíamos concluir em qual momento da história estávamos; no chão a lama fina, ainda misturada em água, formava um espelho, o mesmo que refletiria, friamente, a destruição.

Sábado, 03 de junho de 2023. Mês de férias, estava viajando para conhecer um pedacinho do Ceará, mas com o coração em Cachoeiro de Itapemirim, isso porque era noite de inauguração do Espaço Cultural Casa Carmô, iniciativa incrível da atriz, mulher incansável e amiga, Amanda Malta. Junto do Anderson, seu parceiro de vida, fizeram com que a casa fechada na Rua Prefeito Seabra Muniz, no Bairro Independência, ganhasse as formas mais genuínas da cultura cachoeirense! Eles pensaram cada detalhe, do lustre às fotos expostas pelas paredes, a Casa Carmô compôs a receita perfeita ao misturar café e cultura; um chopp também para aqueles que, como eu, numa mão seguram o livro de poemas e na outra a alça da caneca, enquanto, sem medo, falam sobre política.

Sábado, 16 de setembro de 2023. Marco Antônio Reis e Brenda Perim me convidaram para prestigiar a inauguração do Centro Cultural Luz Del Fuego, seu mais recente projeto, aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura Capixaba. Um pouco cansada após ter passado o dia entre tarefas domésticas, transformei a gata borralheira em Cinderela, e fui ao encontro dos amigos e seu novo espaço cultural, na Rua Newton Prado, no Bairro Ibitiquara. Duas atrações, ambas exibidas no teatro localizado na parte superior do imóvel, me fizeram chorar; Luiz Carlos Cardoso, com seu ensaio aberto de “A Metamorfose” de Franz Kafka, mexeu em algum lugar adormecido em mim. Senti a lágrima escorrer com gosto de saudade. Na cena seguinte, Iuriê me surpreendeu, uma Luz Del Fuego atual, performática, se rodopiava – em meus pensamentos, ao som dos bandolins, tal qual a dançarina de Oswaldo Montenegro – trazendo à tona a força de um choro irresignado, de mulher que jamais se cala ante as adversidades e violências estruturais.

Sábados, 25 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2023. Na noite que o Itapemirim transbordou e devastou o centro da cidade, revirando espaços culturais, uns em especial, como o Teatro Municipal Rubem Braga – que segue fechado, agora blindado por uma espécie de tapume em aço ou algo assim, na tentativa de “espantar” a população em situação de rua e, por conseguinte, aprisionar a arte naquela caixa aporofóbica – não entendi como doze metros de água e lama teriam, tão ferozmente, submergido a cultura e o palco do teatro. Ao me deparar com “A Metamorfose” e aquela Luz Del Fuego vibrante, não me restaram dúvidas: em momento algum a natureza se voltara contra a cultura ou quisera destruí-la; as águas violentas do Rio avançaram sobre o Municipal Rubem Braga e o calaram para que outras vozes pudessem ser ouvidas. Existiu, por fim, um ato de coragem da própria natureza que, ao mover, forçosamente, aquilo que estava acomodado, incomodou Amanda, Anderson, Marco e Brenda; calou-se o teatro, gritaram os artistas!


29 de setembro de 2023.
Valquiria Rigon Volpato 

terça-feira, 28 de março de 2023

21 de Março: Dia Internacional contra a Discriminação Racial e Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé


“...quando a batida no couro do tambor respondeu à primeira estrofe da cantoria, veio vindo, de dentro, a vibração; sangue pulsando e a certeza de que havia ali identidade. Era o mesmo DNA. Batendo palmas, a roda se mantinha, calor provocado pela emoção aquecendo a noite fria daquele 13 de Maio”.

Brasil, país de tantos tons, nasceu miscigenado, injetou nas veias de seus filhos a diversidade e acertou na composição. Vovó Aparecida contava que quando foi encontrada estava debaixo de uma sombrinha, num pasto de fazenda, rodeada pelo gado, disse que o capataz pegou a cesta e levou-a para a sede da fazenda, pra ser criada. Vovó era preta. Já o vovô Antônio, de olho claro, veio marcado pela longa travessia do Atlântico – navio que deixaria a Itália para ancorar no Brasil. Vovô era branco. Num país de misturas, somos resultados de um todo que se explica, mas nem sempre se entende; caminhos atravessados pelo amor, mas também pela dor. Em 1888, naquele 13 de Maio, a notícia era de que a escravidão deixaria de existir, no entanto, 135 anos mais tarde, a quantas correntes estamos presos? Os grilhões da antiga – e moderna – escravidão ainda impedem homens e mulheres de serem, definitivamente, livres… e, pelas amarras de outrora, há danos a serem reparados.

“...havia espécie diferente de alegria naquele momento. Cheguei, reverenciei o templo, a simbologia que carrega, e aguardei, paciente, o início da reza. O som do tambor rompeu o silêncio concretado das paredes daquela igreja e se fizeram preces em festa, com cores, danças, flores; orações assuntas aos céus”.

As compensações legais arquitetadas para tentar minimizar os impactos da violência racial não são suficientes para recompor, refazer a história, entretanto possuem a nobre missão de demonstrar que há o reconhecimento a quem verteu sangue, injustamente, para suprir os caprichos de uma sociedade cuja “época lhes permitia” tal comportamento. Embora haja, neste texto, o desejo de manter no passado o preconceito, como se, exatamente, ao tempo estivesse entrelaçado, pesaroso admitir que não, notar no agora a invasão da ignorância – a mesma foice mutiladora, capaz de aleijar homens e sonhos.

“...por volta de meio dia, Sol quente, na rua estreita de paralelepípedos, avistei-os, uns vinte ou trinta, cantando com voz forte, vestidos de branco e com espécie de estacas nas mãos, vinham subindo a ladeira. Pararam em filas, uns em frente aos outros, ergueram os pedaços de madeira e iniciaram o que me pareceu ser uma dança. Só mais tarde viria entender que era um encontro de “jornaleiros”, batendo suas flechas, rendendo homenagens a São Sebastião”.

Existe uma lacuna na compreensão da diversidade, do que é plural, sobretudo quando observadas em pessoas circunscritas num mesmo espaço geográfico, caracterizada por costumes, hábitos sociais ou crenças que, naturalmente, variam de uma pessoa para outra. No meio do caminho da diversidade tem uma pedra – a intolerância – difícil de ser removida, porque sua base está calcada no individualismo, cuja plataforma é o desrespeito.

“Na entrada, ainda sem entender a grandeza daquele lugar, olhei para a esquerda e vi o que, mais tarde, me disseram ser um assentamento de Exu. Avancei pelas escadas; no último degrau me esperava, toda de branco, quem me daria um forte abraço acolhedor. Sorrimos. À direita, no centro do barracão, o ireasè enfeitado para Iansã anunciava que naquela noite haveria saída de santo; era festa ao som dos atabaques!”.

Covardia é não se permitir a reflexão, seguindo, sem freios, o discurso cego do ódio, sem a compreensão demandada pela pluralidade que cerca o ser humano. Tendo votado em si mesmo, o homem elegeu-se dono da verdade, cujo poder – emanado de si para si – é deter a capacidade de dizer sobre o que é certo ou errado e, assim, julgar e condenar aquilo que, sendo diferente, afeta suas mais profundas inseguranças. A fortaleza invisível que impede o pensar, também se ergue, em muros altos, distanciando o homem de sua própria identidade.

“...parecia ser apenas mais uma manhã como qualquer outra. Fomos ao Bairro Nova Brasília para falar sobre trabalho; entre uma conversa e outra, gritou aos meus olhos, pendurados pouco acima da cabeça uns colares com miçangas coloridas. Perguntei se eu poderia usar, se não faltaria com respeito por não ser da religião. Ela me respondeu que não. A conversa seguiu outros caminhos. Tempo depois, chega o marido, também dono da casa. Ele se apresenta, sorri e, sem qualquer explicação, me entrega um daqueles colares: toma, é um presente pra você! Era guia de Xangô. Imediatamente, meus olhos se encheram de lágrimas; uma emoção instantânea me tomou. Naquela manhã, apesar de não saber, recebi a cura que somente eu sabia que precisava: Obá Kaô Kabecilê, Xangô!"

("Ode à Cultura Popular" - especial em homenagem ao Dia Internacional contra a Discriminação Racial e Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé).


Valquiria Rigon Volpato
21 de março de 2023.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

IncoMude-se

"Encaixados vão construindo a vida, que é estrada, mas não ponto final"...


Tantas coisas para escrever e um emaranhado de pensamentos tentando encontrar porta de saída – assim me sinto quando tenho a necessidade de olhar o papel em branco e conversar com ele coisas que, até sei dizer, mas não com a precisão com a qual posso escrever. Janeiro de 2023, o tempo não parou para minhas reflexões sobre o ano que passou – e 2022 merece uma pausa, uma xícara de café, um biscoitinho polvilhado com açúcar; merece ser sentido.

É clichê falar sobre aprendizados após o ano que se encerra, todo mundo faz isso – e daí se sou todo mundo de vez em quando?! – fato é que 2022 me deu certezas, entre elas que caminho não é destino. Mulher, 38 anos, advogada, servidora pública, escritora por paixão e muita convicção, solteira, sem filhos por opção, esses são os pavers do caminho que percorri até aqui. Encaixados vão construindo a vida, que é estrada, mas não ponto final. Lembro da metáfora do sapo, que se colocado na panela com a água ainda fria e aos poucos esquentando, certamente, morrerá cozido, porque a forma paulatina como o calor envolve o anfíbio não proporcionará o incômodo necessário para que ele pule e salve a própria vida. O sapo morre cozido na acomodação da água que esquenta aos poucos – o homem também.

Na história do sapo fico imaginando alguns cenários possíveis: ele se acostuma a ferver e morre sem reagir, sem sequer se debater, porque não percebe. Alguém o cutuca, balança a panela, ele pula para fora – estaria vivo! Mas, em “casa”? A verdade – minha e não, necessariamente, do sapo – é que o calor da água quente dá a impressão de segurança, conforta algumas emoções; do lado de lá da panela é desconhecido, frio (?), as possibilidades são infinitas e dá medo de viver, de experimentar o novo. Lembra quando eu disse que está tudo bem ser todo mundo de vez em quando?

Em 2022 cutucaram a panela e o “eufíbio” pulou para onde não conhecia. Não houve chão seguro, pelo contrário, a sensação de não estar em casa trouxe desconforto e noites mal dormidas; momentos em que voltar para a água quente parecia meta, única solução. Por fim, desistir. O aprendizado, afinal, repousaria no desistir? Fatalmente, que não! Há que se aprender, ainda, que a vida é estrada e não destino, por isso desistir não é sequer opção. Enquanto o foco era a panela, o mundo estava limitado ao diâmetro de grãos de arroz cozidos para o almoço; embora o sapo – e eu – não soubesse, depois de sair da letargia dessa enganosa sensação de conforto e segurança, outros lugares também podem ser seguros, não mais pela ebulição da água que acolhe – ilusão – e depois mata, mas pela pavimentação das vias condutoras do destino.

Acredito mesmo que não é necessário ter certeza o tempo inteiro – ganhar e perder, fazem parte – contudo, entender onde se está posicionado no universo é a medida certa entre a dimensão de mundo ou de panela. E se a água esquentar, pule.


Valquiria Rigon Volpato,

20 de janeiro de 2023.