"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

segunda-feira, 23 de maio de 2022

O que ainda está inteiro em mim


Hoje recebi da vida uma espécie de toque – ainda não sei bem se foi toque, aperto de botão ou abrir de gavetas – que me fez voltar no tempo uns vinte e cinco anos, em 1997.

[Antes de continuar com a ideia principal desse texto, preciso parar e refletir um pouco sobre a ligeireza do tempo, como tudo aquilo, apesar de tão vívido em mim ficou tão distante. Caramba! Foram duas frases na tentativa de compor um parágrafo e parece que algo explodiu em mim... Eu só tinha doze anos, não poderia supor quantas coisas aconteceriam comigo nos próximos vinte e cinco anos e como os atos daquele momento, mesmo com meu total desconhecimento sobre previsão de futuro iriam influenciar quem sou hoje ou como todos aqueles pedacinhos eram parte de mim].

Naquela época frequentava com rotina a biblioteca da escola – o extinto Colégio Ateneu Cachoeirense – e me interessavam os romances, encontrava nos livros emoções que me faziam transbordar junto às personagens. Não saberia dizer quantas vezes chorei e sorri para o papel absorta naquele conteúdo de vidas que se confundiam e entrelaçavam à minha. Um de meus dilemas durante a leitura era saber dosar a velocidade: não podia ler rápido demais sob pena de terminar o livro e ficar órfã daquela história que mexia tanto com meus sentimentos; órfã do amor estabelecido no curto espaço de tempo que duravam esses meus relacionamentos adotivos.

Nas prateleiras de madeira da biblioteca do Ateneu encontrei certa vez com um tal Pedro Bandeira, responsável por fazer adaptação livre da obra Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, escrevendo o então seu “A Marca de uma Lágrima”. Acredito que mais do que a própria Isabel – protagonista da trama de Bandeira – minhas lágrimas marcaram as páginas do livro; fortissimamente conectada à história, havia em mim sensações e imagens, tudo acontecia na forma como meu corpo e pensamentos projetavam as cenas.

Vinte e cinco anos mais tarde, manhã de segunda-feira, numa conversa despretensiosa costurada por uma xícara de café, lembrei-me do quanto sou sensível e como os sentimentos importam para mim. Viajei no tempo para me reencontrar com a menina leitora e perceber nas páginas dos livros o refúgio, a liberdade de ser, sentir e criar minhas histórias, indo para lugares, conhecendo pessoas... vivendo através delas. Na mesma conversa, em maio de 2022, percebi que a falta despertou em mim o desejo; por não ter, agarrei a oportunidade quando a encontrei e a fiz especial. Minhas emoções importam – não as devo julgar e condenar – porque, definitivamente, a partir delas construí sentimentos.

Os livros me ensinaram a amar, chorar e sorrir, me sensibilizaram, falaram comigo sobre empatia – e isso não tem nada a ver com perfeição. Entre tantos pedaços de mim, especialmente hoje, os livros me parecem aquilo que, validado pelo tempo, ainda está inteiro em minhas memórias e coração.




Cachoeiro de Itapemirim, 23 de maio de 2022
Valquiria Rigon Volpato