"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Aqueles sábados...

..."ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins".


Sábado, 25 de janeiro de 2020. Em casa as notícias chegavam por toda parte; no WhatsApp os grupos encaminhavam vídeos, fotos e áudios que, ao serem baixados, davam conta da tragédia. À medida com que as águas do Itapemirim inundavam a cidade, as galerias de celulares transbordavam aqueles arquivos de uma das notícias mais tristes já recebidas pelos cachoeirenses: o Rio Itapemirim, manso, de pequenas quedas entre pedras, havia se transformado com ferocidade inimaginável! Os doze metros acima de seu nível varreram o centro da cidade como nunca – sem qualquer exagero – se tinha visto.

Domingo, 26 de janeiro de 2020. Por volta das quatorze horas, após uma longa noite de angústia, o Itapemirim parecia se reencontrar em suas margens. No grupo de trabalho nos organizamos para a missão, que apenas mais tarde, entenderíamos seu verdadeiro significado; calcei botas emborrachadas, calça, uma blusa mais surrada, amarrei os cabelos em coque e, na companhia de minha irmã e cunhado, rumamos até o Palácio Bernardino Monteiro. Nosso carro estava limitado a algumas ruas da parte mais alta, descemos a pé e, de imediato, nos deparamos com a Praça Jerônimo Monteiro encoberta com tonelada de lama, restos de galhos e mobílias. Caos. Quando a chave girou para abrir a porta do Bernardino Monteiro ainda não poderíamos concluir em qual momento da história estávamos; no chão a lama fina, ainda misturada em água, formava um espelho, o mesmo que refletiria, friamente, a destruição.

Sábado, 03 de junho de 2023. Mês de férias, estava viajando para conhecer um pedacinho do Ceará, mas com o coração em Cachoeiro de Itapemirim, isso porque era noite de inauguração do Espaço Cultural Casa Carmô, iniciativa incrível da atriz, mulher incansável e amiga, Amanda Malta. Junto do Anderson, seu parceiro de vida, fizeram com que a casa fechada na Rua Prefeito Seabra Muniz, no Bairro Independência, ganhasse as formas mais genuínas da cultura cachoeirense! Eles pensaram cada detalhe, do lustre às fotos expostas pelas paredes, a Casa Carmô compôs a receita perfeita ao misturar café e cultura; um chopp também para aqueles que, como eu, numa mão seguram o livro de poemas e na outra a alça da caneca, enquanto, sem medo, falam sobre política.

Sábado, 16 de setembro de 2023. Marco Antônio Reis e Brenda Perim me convidaram para prestigiar a inauguração do Centro Cultural Luz Del Fuego, seu mais recente projeto, aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura Capixaba. Um pouco cansada após ter passado o dia entre tarefas domésticas, transformei a gata borralheira em Cinderela, e fui ao encontro dos amigos e seu novo espaço cultural, na Rua Newton Prado, no Bairro Ibitiquara. Duas atrações, ambas exibidas no teatro localizado na parte superior do imóvel, me fizeram chorar; Luiz Carlos Cardoso, com seu ensaio aberto de “A Metamorfose” de Franz Kafka, mexeu em algum lugar adormecido em mim. Senti a lágrima escorrer com gosto de saudade. Na cena seguinte, Iuriê me surpreendeu, uma Luz Del Fuego atual, performática, se rodopiava – em meus pensamentos, ao som dos bandolins, tal qual a dançarina de Oswaldo Montenegro – trazendo à tona a força de um choro irresignado, de mulher que jamais se cala ante as adversidades e violências estruturais.

Sábados, 25 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2023. Na noite que o Itapemirim transbordou e devastou o centro da cidade, revirando espaços culturais, uns em especial, como o Teatro Municipal Rubem Braga – que segue fechado, agora blindado por uma espécie de tapume em aço ou algo assim, na tentativa de “espantar” a população em situação de rua e, por conseguinte, aprisionar a arte naquela caixa aporofóbica – não entendi como doze metros de água e lama teriam, tão ferozmente, submergido a cultura e o palco do teatro. Ao me deparar com “A Metamorfose” e aquela Luz Del Fuego vibrante, não me restaram dúvidas: em momento algum a natureza se voltara contra a cultura ou quisera destruí-la; as águas violentas do Rio avançaram sobre o Municipal Rubem Braga e o calaram para que outras vozes pudessem ser ouvidas. Existiu, por fim, um ato de coragem da própria natureza que, ao mover, forçosamente, aquilo que estava acomodado, incomodou Amanda, Anderson, Marco e Brenda; calou-se o teatro, gritaram os artistas!


29 de setembro de 2023.
Valquiria Rigon Volpato