..."ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins".
Sábado, 25 de janeiro de
2020.
Em casa as notícias chegavam por toda parte; no WhatsApp os grupos encaminhavam
vídeos, fotos e áudios que, ao serem baixados, davam conta da tragédia. À
medida com que as águas do Itapemirim inundavam a cidade, as galerias de
celulares transbordavam aqueles arquivos de uma das notícias mais tristes já
recebidas pelos cachoeirenses: o Rio Itapemirim, manso, de pequenas quedas
entre pedras, havia se transformado com ferocidade inimaginável! Os doze metros
acima de seu nível varreram o centro da cidade como nunca – sem qualquer
exagero – se tinha visto.
Domingo, 26 de janeiro de
2020.
Por volta das quatorze horas, após uma longa noite de angústia, o Itapemirim
parecia se reencontrar em suas margens. No grupo de trabalho nos organizamos
para a missão, que apenas mais tarde, entenderíamos seu verdadeiro significado;
calcei botas emborrachadas, calça, uma blusa mais surrada, amarrei os cabelos
em coque e, na companhia de minha irmã e cunhado, rumamos até o Palácio
Bernardino Monteiro. Nosso carro estava limitado a algumas ruas da parte mais
alta, descemos a pé e, de imediato, nos deparamos com a Praça Jerônimo Monteiro
encoberta com tonelada de lama, restos de galhos e mobílias. Caos. Quando a
chave girou para abrir a porta do Bernardino Monteiro ainda não poderíamos
concluir em qual momento da história estávamos; no chão a lama fina, ainda
misturada em água, formava um espelho, o mesmo que refletiria, friamente, a
destruição.
Sábado, 03 de junho de
2023.
Mês de férias, estava viajando para conhecer um pedacinho do Ceará, mas com o
coração em Cachoeiro de Itapemirim, isso porque era noite de inauguração do
Espaço Cultural Casa Carmô, iniciativa incrível da atriz, mulher incansável e
amiga, Amanda Malta. Junto do Anderson, seu parceiro de vida, fizeram com que a
casa fechada na Rua Prefeito Seabra Muniz, no Bairro Independência, ganhasse as
formas mais genuínas da cultura cachoeirense! Eles pensaram cada detalhe, do
lustre às fotos expostas pelas paredes, a Casa Carmô compôs a receita perfeita
ao misturar café e cultura; um chopp também para aqueles que, como eu, numa mão
seguram o livro de poemas e na outra a alça da caneca, enquanto, sem medo,
falam sobre política.
Sábado, 16 de setembro de
2023.
Marco Antônio Reis e Brenda Perim me convidaram para prestigiar a inauguração
do Centro Cultural Luz Del Fuego, seu mais recente projeto, aprovado pela Lei
de Incentivo à Cultura Capixaba. Um pouco cansada após ter passado o dia entre
tarefas domésticas, transformei a gata borralheira em Cinderela, e fui ao
encontro dos amigos e seu novo espaço cultural, na Rua Newton Prado, no Bairro
Ibitiquara. Duas atrações, ambas exibidas no teatro localizado na parte
superior do imóvel, me fizeram chorar; Luiz Carlos Cardoso, com seu ensaio
aberto de “A Metamorfose” de Franz Kafka, mexeu em algum lugar adormecido em
mim. Senti a lágrima escorrer com gosto de saudade. Na cena seguinte, Iuriê me
surpreendeu, uma Luz Del Fuego atual, performática, se rodopiava – em meus
pensamentos, ao som dos bandolins, tal qual a dançarina de Oswaldo Montenegro –
trazendo à tona a força de um choro irresignado, de mulher que jamais se cala
ante as adversidades e violências estruturais.
Sábados, 25 de janeiro de
2020 e 16 de setembro de 2023. Na noite que o
Itapemirim transbordou e devastou o centro da cidade, revirando espaços
culturais, uns em especial, como o Teatro Municipal Rubem Braga – que segue
fechado, agora blindado por uma espécie de tapume em aço ou algo assim, na
tentativa de “espantar” a população em situação de rua e, por conseguinte,
aprisionar a arte naquela caixa aporofóbica – não entendi como doze metros de
água e lama teriam, tão ferozmente, submergido a cultura e o palco do teatro.
Ao me deparar com “A Metamorfose” e aquela Luz Del Fuego vibrante, não me
restaram dúvidas: em momento algum a natureza se voltara contra a cultura ou
quisera destruí-la; as águas violentas do Rio avançaram sobre o Municipal Rubem
Braga e o calaram para que outras vozes pudessem ser ouvidas. Existiu, por fim,
um ato de coragem da própria natureza que, ao mover, forçosamente, aquilo que
estava acomodado, incomodou Amanda, Anderson, Marco e Brenda; calou-se o
teatro, gritaram os artistas!
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