"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Sempre Livre



Meses atrás lembro de ter ido à academia, como de costume, e me sentir mal por conta da cólica menstrual e daquele desconforto pelo uso do absorvente durante o treino. A briga era entre a capacidade de absorção daquela “fraldinha” e o fluxo, que a cada agachamento parecia, literalmente, esguichar. 

Aos onze anos, véspera de Natal, estava na casa de minha avó materna – vovó Zelinda – quando fui ao banheiro e percebi o tom mais avermelhado do xixi na louça branca do vaso sanitário. Desconfiada do que poderia ser, falei com minha mãe e avó sobre o ocorrido e, então, veio a sentença: “virou mocinha!”. Meu primeiro absorvente foi um paninho dobrado algumas vezes repousado sobre a calcinha – sem qualquer aderência ou forma de fazê-lo ficar preso ali. Em seguida, conheci os absorventes industrializados, notei que a cobertura suave é mais adequada à minha pele por não me causar tanta irritação, porém admito: a relação mensal com a menstruação nunca foi algo fácil, seja pelos episódios de dores, prisão de ventre, inchaços, desconforto, medo de sujar a roupa - calça branca nem pensar - ou oscilações emocionais.

Naquela noite, após o treino, passei em uma farmácia localizada na Praça Pedro Cuevas Júnior – a praça recebeu esse nome fazendo alusão a Pedro, que em 1936 fora Presidente da Câmara de Vereadores de Cachoeiro – para comprar absorventes. Entre um corredor e outro, um pensamento e outro, acessei a prateleira desejada; peguei dois pacotes de costume e segundos antes de ir em direção ao caixa me deparei com uma prateleira repleta de coletores menstruais e calcinhas absorventes. Como boa capricorniana, já havia lido a respeito, mas ainda não tinha visto os tais coletores pessoalmente; tê-los na prateleira despertou curiosidade, comecei a verificar os modelos, ler instruções de uso, ver diferenças entre marcas, tamanhos... Guardei os pacotes em seus lugares e liberei as mãos para tocar e continuar minha imersão no mundo dos coletores menstruais.

Alguma coisa entre trinta ou quarenta minutos depois me convenci a comprar um coletor menstrual – me convenci com alguma insegurança, com medo de desperdiçar R$ 89,90 por não saber ou conseguir usar. Apanhei aquele objeto da prateleira e fui para o caixa, deixando os pacotes de absorventes para trás, na tentativa de me forçar ao uso. Se eu vencesse algumas barreiras – como o toque no próprio corpo e a impressão, curiosamente, negativa sobre o sangue menstrual – e encontrasse a forma correta de utilizar o coletor, economizaria muito a longo prazo e ainda daria minha contribuição para o meio ambiente. Seria perfeito!

Em casa, depois de tomar os cuidados recomendados na embalagem, passei ao que seria o mais desafiador: o encontro íntimo comigo. Com tutorial encontrado no Youtube e determinação, passei uns quinze minutos para conseguir encaixar o coletor no lugar certo, mas funcionou! Uma alegria imensa tomou conta de mim ao perceber que havia conseguido e o melhor, não incomodava nem um pouquinho, dispensava os absorventes tradicionais e me mantinha limpinha. Era o auge da alegria! Mas, nem tudo são flores e chegou o momento de retirar o coletor. Instruções, vídeos e por fim as tentativas, infelizmente, sem sucesso. Aperta daqui, puxa dali e nada! Bastante tempo depois, angustiada, porém sem desistir, consegui remover; com medo de inserir novamente, mas ainda tentando, tive duas emoções: a alegria por aprender a colocar e a tristeza por não saber remover.

No ciclo menstrual seguinte, por não ter tido a melhor experiência de remoção do coletor, resolvi voltar ao absorvente comum. Pitadas de frustração temperaram aquele mês. O tempo passou e com a chegada de mais um ciclo considerei voltar a usar o coletor – se foi feito para isso, por que comigo não iria funcionar? 

Entre o “virou mocinha” e os dias atuais se passaram vinte e sete anos, mais de trezentos ciclos menstruais, três mil absorventes, uma média de impressionantes R$ 30.000,00 gastos e sabe-se lá Deus quanta poluição ambiental isso causou. Não sou muito boa em matemática, os números que citei são apenas aproximações, no entanto faz pensar sobre como é importante se permitir conhecer – a si mesmo – e novas tecnologias capazes de tornar tudo mais sustentável. O relacionamento com o próprio corpo e com a menstruação, infelizmente, não é tão tranquilo; as barreiras estruturais de uma sociedade conservadora, machista e misógina recaem de muitas maneiras sobre as mulheres e é preciso um ato de coragem para mudar e entender que o corpo feminino não é uma prisão. 

Uma coisa é certa: que bom que não desisti de usar o coletor menstrual! As tentativas anteriores me ensinaram o que não daria certo e me forçaram a buscar novos caminhos; encontrei meus contornos, desenvolvi minhas técnicas e hoje as dificuldades anteriores não existem mais. Depois de tantos anos, pela primeira vez não precisei ir à farmácia comprar absorventes, porque o coletor menstrual é o bastante para conter o fluxo – que muda aspecto, de cheiro e de cor. Agradeço à Valquiria desanimada daquela noite por ter se permitido conhecer mais, ler mais, aprender mais, pois foi esse ato de amor e coragem que fez a Valquiria de hoje se tornar mais independente, livre e consciente.



Valquiria Rigon Volpato

24 de agosto de 2024


quarta-feira, 20 de março de 2024

De volta à praça

(O título dessa crônica é de autoria do Gabriel, jovem de 15 anos, morador do bairro Zumbi, em Cachoeiro de Itapemirim. Gabriel e eu nos conhecemos durante oficina de escrita criativa que tive a honra de conduzir na Unidade de Internação Provisória, do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo).


Hoje, enquanto almoçava no shopping Cachoeiro, um pensamento distante veio à tona; lembrei de quando almoçar naquela praça de alimentação era algo que estava muito além das minhas possibilidades financeiras. Em dezembro 1995 o shopping, recém-inaugurado, tinha aquela conotação de novidade – o cachoeirense entende o que estou dizendo – o point do momento era frequentar o shopping, olhar as vitrines, era um passeio importante na minha dimensão de criança à época com dez anos.

Em algum lugar do passado, na mesma praça de alimentação, seria exibido o filme Titanic, uma febre quase tão ardente quanto a paixão de Jack e Rose eternizados por Leonardo Di Caprio e Kate Winslet. Na oportunidade, já com doze, treze anos, o sonho de menina era assistir ao filme, mas na mesma proporção em que a praça de alimentação era distante, Titanic também se mantinha afastado de minhas possibilidades.

Na Escola Unidocente Itabira, aos oito anos, ingressei na primeira série – não vou me ater aqui à técnica, ao que mudou, vou escrever como vivi, como era naquele tempo – pulei toda a fase do “prezinho”, estudei até a quarta série sob os cuidados da professora Nicéia, minha tia, irmã de minha mãe, que até hoje se mantém em sala de aula – uma verdadeira heroína da educação básica. Mais tarde, convencido de que seria o melhor, preocupado com as greves no ensino público, meu pai me matricularia no Colégio Ateneu Cachoeirense, onde permaneci até o terceiro ano do ensino médio. O fato de estudar no Ateneu parece controverso a impossibilidade de acessar a praça de alimentação do shopping Cachoeiro, porém controverso mesmo era o fato de estudar em escola particular – o esforço financeiro para que eu pudesse estar naquele colégio foi grande, só me restando a opção de estudar e aproveitar o tempo ali.

O tempo. Era hora de deixar o Ateneu e pensar no vestibular, lembro de ter medo desse momento, de não conseguir, acabei prestando vestibular para Comunicação no Centro Universitário São Camilo e Direito, na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – se você me conhece, já sabe o caminho que escolhi trilhar... Durante a faculdade, o shopping ainda era inacessível, costumava entrar para olhar as vitrines, usar o banheiro, trabalhar – pois é, trabalhei por um período no shopping Cachoeiro, mas essa é outra história.

Quando concluí a faculdade, já em 2008, nossa relação – a minha com o shopping Cachoeiro – esfriou um pouco; a gente não tinha mais a paixão estilo Jack e Rose, embora, de minha parte, estivesse sempre por ali – nas “aventuras” das escadas rolantes, no cinema, no sétimo andar apenas para ter vista da cidade, fotografar o Itabira, na praça de alimentação quando, vez ou outra, comprava água ou suco, uma espécie de contrapartida por estar sentada esperando o tempo passar.

Agora, enquanto almoço na praça de alimentação do shopping Cachoeiro nos percebo mais equilibrados, nossa relação mais madura, até porque daquele 1995 pra cá muita coisa mudou. Levanto-me. Compro um bombom de chocolate com recheio de morango e desço as escadas rolantes em paz.

Cachoeiro de Itapemirim - ES, 20 de março de  2024

Valquiria Rigon Volpato