"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

segunda-feira, 27 de março de 2017

150 anos de emancipação política de Cachoeiro de Itapemirim - Carta de 1867



Vila do Cachoeiro de Itapemirim – ES,
25 de março de 1867.

Querido amigo,

Os anos estão passando depressa, já não me recordo da última vez que estive contigo, espero que a distância em nada tenha abalado nossa amizade. Tenho novidades para contar e dividir contigo sempre foi uma de minhas grandes alegrias, bem sabes disso. Sinto que a vida está mudando por aqui... A Freguesia de São Pedro do Cachoeiro de Itapemirim agora é Vila do Cachoeiro de Itapemirim, isso significa que estamos crescendo, não é mesmo? Quem poderia imaginar que o pequenino povoado arraigado às margens do Rio Itapemirim viesse a ganhar novos contornos? Tenho refletido sobre os fatos e, apesar de não ser comum ou valorizado que uma moça se impressione com algo mais que não sejam os afazeres cotidianos, de ti jamais escondi meu interesse por assuntos políticos. Entre nós nunca houve segredos!

Esta terra, recentemente descoberta, um modesto povoado crescido junto às “caxoeiras” do rio, cachoeiras que passariam a ser “caxoeiros” do Itapemirim, continua seu caminho de mudanças rumo ao futuro. Poucos sabem exatamente o que está se passando, mas não os culpo; em grande parte é gente simples, que ainda carrega consigo as marcas da colonização, da escravidão... Claro que isso também irá mudar, mas será necessário tempo, o tempo transformador de fatos e gerações.

Em minhas reflexões, tento imaginar como chegamos até os dias atuais e concluo que nada mais aconteceu além daquilo que a ação humana provocou. Quando, em 1812, Francisco Alberto Rubim, donatário da capitania do Espírito Santo, recebeu a missão de promover o povoamento deste lugar, foi dado o primeiro passo que, naturalmente, jamais teria volta. A região era dominada pelos índios, Puris e Botocudos, mas que não foram obstáculos para a gana exploradora dos mineradores em busca do ouro recém-descoberto, para quem desejava cultivar lavouras próximas ao encachoeiramento do rio ou para aqueles que viam, neste espaço, possibilidade de se fixar.

Alguns fazendeiros de Itapemirim, com vistas a estender a amplitude de suas terras, aproveitaram o início do desbravamento para dominarem as margens do rio. O senhor Joaquim Marcelino da Silva Lima, o Barão de Itapemirim, foi um destes... Deteve, por anos, toda extensão da margem direita do rio. Éramos, apesar de tudo, um povoado perdido, banhado pelas águas do Itapemirim... Então vieram os anos 50... 1850! Os primeiros moradores, o comércio, a iluminação, os correios... À medida que as necessidades humanas surgiam, as “modernidades” também chegavam; inevitável.

Pois bem, amigo, hoje, 25 de março de 1867, de modo especial, resolvi lhe escrever, porque sinto que esta data ficará para a história: instalou-se a Câmara Municipal desta Vila do Cachoeiro de Itapemirim! Recebemos o direito de viver sob nossas próprias regras, com capacidade para deliberar! À sessão estiveram presentes os senhores vereadores: Coronel Francisco Xavier Monteiro Nogueira da Gama, Major Misael Ferreira de Paiva, Dr. Joaquim Antônio de Oliveira Seabra, Capitão Francisco de Souza Monteiro, Capitão José Vieira Machado, Capitão Pedro Dias do Padro e Dr. Antônio Olinto Pinto Coelho.

Estou certa de que esta data será lembrada como o dia em que a Vila do Cachoeiro de Itapemirim foi emancipada politicamente. Nem todos sabem o que isso quer dizer, sei disso, mas um dia entenderão o processo pelo qual estamos passando. Repito: o povoado, perdido às margens do rio, agora está autorizado a tomar suas próprias decisões políticas. Emancipar-se é estar livre de qualquer tutela, livre para administrar, para decidir... E, por isso, prevejo que esta data será lembrada com grande importância e honrarias. Em tempos vindouros, nossa gente irá se reunir para aclamar a emancipação, prestar homenagens e rememorar este dia.

Gostaria de poder participar de tudo o que ainda está por vir em termos de progresso e acontecimentos históricos, todavia compreendo que cada um de nós tem seu tempo para existir e sua parcela a contribuir. Imagino como será a Vila, futura cidade... Quantas pontes se estenderão sobre o rio, quantas casas espalhadas por todos os cantos, quantos seremos! Quem seremos nós daqui, quem sabe, 150 anos?!

Hoje, enquanto caminhava pelas ruas, reparei firmemente nas águas do rio e nelas vi refletir, como sentinela, o Itabira, preenchi-me ainda mais de afeto por este lugar, pelo privilégio que é viver circunscrita pela natureza. Gosto de ser bairrista; não é ofensa, é carinho! Ainda leremos bons textos sobre o que lhe disse agora... Alguém, muito orgulhoso, um dia dirá a São Pedro, quando às portas do céu estiver: “Eu sou lá de Cachoeiro”! E outro, em sofreguidão por todas as mazelas cotidianas, será capaz de afirmar: “sensibilidade que é uma antena delicadíssima, captando pedaços de todas as dores do mundo, e que me fará morrer de dores que não são minhas”.

Por isso, valioso amigo, espero que um dia, em praça pública, o povo celebre a emancipação política e, sobremaneira, celebre a consciência de seus direitos e deveres. Espero que saibamos conduzir com sabedoria o destino de nossa Cachoeiro, preocupados sim com o progresso material, contudo ainda mais atentos ao progresso humano... Porque é com gente que se constrói... Alvenarias e também o futuro.

Quero ter notícias suas, escreva-me quando puder e conte como estão as coisas por aí. Não deixarei de lhe dizer a quantas anda a Vila do Cachoeiro, mas exijo que me digas como é viver aí... em 2017! Leve meu abraço a todos, compartilhe com tantos quantos puder minha alegria por ter vivido este momento e não se esqueça, nunca, do nosso “pequeno Cachoeiro”.

Saudações afetuosas desta sua,

amiga cachoeirense!

Valquiria Rigon Volpato

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