Postagens

Mostrando postagens de 2018

O homem, a máquina e o sapato

Comecei a observá-lo ao longe; certamente, não me viu. Fiquei algum tempo prestando atenção nele, na máquina de costura e nos óculos, em acrílico, usados para proteger os olhos. Engraçado! A máquina fazia muito barulho, nem parecia máquina de costura, parecia a máquina do trem, o mesmo que ouvia passar quando visitava minhas primas, em Cobiça. Minha meninice, à época, não abafou a lembrança vívida daquele som. Observando aquele homem, pertinho da rua, com sua máquina de costura e óculos de proteção… Ah, já ia me esquecendo, ele costurava um sapato! E parecia fazer um excelente trabalho, estava tão atento na costura, nos detalhes. Pensei se ele estava ali somente por causa do sapato; quase me esqueci, era uma sapataria, por isso ele costurava o sapato… Mas, ante a cena, quem daria atenção à sapataria?! Eu, por exemplo, estava fixa nele, nos óculos, na máquina, embora a sapataria estivesse ali. Talvez, se houvesse algum sapato para consertar, precisando de uma fivela ou “saltinho” ...

Nunca me pareceu vício

Imagem
O cigarro era um amigo. Entre os dedos da mão direita, levando-o à boca com precisão cirúrgica, tragava e, então, jogava fora a fumaça branca. Repetia o gesto incontáveis vezes durante o dia. Entre um cigarro e outro, cumprimentava, com poucos movimentos, quem por ele passava. Seu ponto favorito? Entre duas paredes de um muro velho, decoradas com pichações maliciosas. Aparentava cansaço. Não! Desânimo. Rabugice. Das poucas vezes que passei por ele, desviei o olhar, não queria o encontro, não me sentia confortável, embora, passos mais tarde, curvasse a cabeça de modo a vê-lo, pela última vez, antes de curvar a esquina. Quarta-feira, dia gris, uma fina camada de poeira d'água caía do céu. Da janela reparei a fumaça branca, virei cautelosamente o olhar… Ele. Senti um arrepio mais frio do que o ar daquele dia percorrendo a espinha, engoli saliva, gosto amargo. Estendi a mão e apanhei o copo com água, um gole após o outro, fazia força para engolir o nó na garganta e dissolver ...

Encontros não marcados

Madrugadas, aparentemente silenciosas, são verdadeiras passarelas do samba, cobertas por foliões em plena agitação, serpenteando à noite, colorindo o sólido preto, acendendo luzes desvairadas que saltitam alegres pelas mentes em ebulição. Foram, assim, nas madrugadas, os encontros não marcados que tivemos… Éramos, completamente, desconhecidos; olhares não cruzados, sorrisos não trocados, estranhos até aquele momento. Seguíamos caminhos tão distintos que, pensar aquele encontro, seria loucura; no entanto, aconteceu. Atenta às palavras , tratei com doçura cada uma de suas intenções, sem permitir qualquer antecipado julgamento capaz de roubar a emoção do primeiro contato. Li, reli, interpretei, mas, especialmente, consenti; deixei ser quem quis. T al qual Arlequim, impulsionado pelas marchinhas carnavalescas, f u i bailando em seus contornos, nem sempre os mais apropriados para o tom da música, contudo, sem regras para os passos daquela dança. Tão livres e desimpedidos aquele...

Sobre cabelos e outras voltas que a vida dá...

Imagem
Lembro-me bem de quando tinha 12 anos. 12 não, talvez um pouco menos. 10 anos, isso. Era aquele tipo de criança miudinha – a sensação é de que tenho o mesmo tamanho desde então – nunca fui do tipo magra, era mais o que minha avó dizia: “tem saúde, essa menina!”. Uma criança, com coisas de criança, mas com certas insatisfações tão severas, que, às vezes, nem parecia ser criança. Sabe o cabelo enrolado? Ah, que tristeza que era aquilo… Estar diante do espelho, ver os cabelos rebeldes, sem limites, como se estivessem em plena revolução, despertava a vontade de entrar, literalmente, em guerra contra aqueles fios indomáveis. É… e virou guerra MESMO! Nas primeiras batalhas, obriguei minha mãe a ser aliada de fronte; olhei para ela, decidida, e disse: “vamos alisar”. Decisão que parecia muito corajosa para uma menina de 12 anos, agora sim, já com 12 anos e insatisfações ainda maiores. Começamos a saga da compra de produtos e idas aos salões de beleza, mas nada parecia adiantar muit...