Nunca me pareceu vício


O cigarro era um amigo. Entre os dedos da mão direita, levando-o à boca com precisão cirúrgica, tragava e, então, jogava fora a fumaça branca. Repetia o gesto incontáveis vezes durante o dia. Entre um cigarro e outro, cumprimentava, com poucos movimentos, quem por ele passava. Seu ponto favorito? Entre duas paredes de um muro velho, decoradas com pichações maliciosas. Aparentava cansaço. Não! Desânimo. Rabugice. Das poucas vezes que passei por ele, desviei o olhar, não queria o encontro, não me sentia confortável, embora, passos mais tarde, curvasse a cabeça de modo a vê-lo, pela última vez, antes de curvar a esquina.

Quarta-feira, dia gris, uma fina camada de poeira d'água caía do céu. Da janela reparei a fumaça branca, virei cautelosamente o olhar… Ele. Senti um arrepio mais frio do que o ar daquele dia percorrendo a espinha, engoli saliva, gosto amargo. Estendi a mão e apanhei o copo com água, um gole após o outro, fazia força para engolir o nó na garganta e dissolver os pensamentos que me atravessaram. Fechei os olhos, sacudi a cabeça, voltei ao trabalho, ainda sem entender o misto de medo e interesse; preferi fechar a janela, entretanto, não havia mais como anular a imagem: da espessa fumaça branca saltava o azul-jeans da jaqueta, matizada pelo grisalho, contornos, para mim, já não esquecíveis.

O Sol retornou na manhã seguinte, revelou rostos afastados pela chuva e escondeu outros, inclusive o dele… Não estava entre as paredes, não havia fumaça, nem azul ou grisalho. Caminhei em direção à janela, sentindo o arfar da respiração inquieta, uma ligeira ansiedade fazendo suar os pés, busquei com avidez felina em caça a cena que tanto me capturava, mas… nada. Vazio perturbador. Sentei-me decidida a manter a calma, respirei uma, duas, três vezes…

Noutro dia, noutro e outro, apenas o espaço em branco se pronunciou. Final da tarde, buscando remontar qualquer parte daquela cena, fui ao encontro das paredes, das pichações mal erotizadas; permaneci imóvel, enquanto o cheiro sufocante da fumaça recompunha a imagem e amargava minha boca, projetando saliva que engolia junto ao nó da garganta.

Como sopro do vento ao pé do ouvido eriçando pelos, aproximou-se e disse: “você o conhecia? Há três semanas teve um ataque do coração, infartou. Fumava além da conta, um viciado”. E foi então, naquele instante, que passei a compreendê-lo. Nunca me pareceu vício; causa mortis: solidão.


Valquiria Rigon Volpato
10 de agosto de 2018


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