“...quando a batida no couro do tambor respondeu à primeira estrofe da cantoria, veio vindo, de dentro, a vibração; sangue pulsando e a certeza de que havia ali identidade. Era o mesmo DNA. Batendo palmas, a roda se mantinha, calor provocado pela emoção aquecendo a noite fria daquele 13 de Maio”.
Brasil, país de tantos tons, nasceu miscigenado, injetou nas veias de seus filhos a diversidade e
acertou na composição. Vovó Aparecida contava que quando foi encontrada estava debaixo de uma
sombrinha, num pasto de fazenda, rodeada pelo gado, disse que o capataz pegou a cesta e levou-a
para a sede da fazenda, pra ser criada. Vovó era preta. Já o vovô Antônio, de olho claro, veio
marcado pela longa travessia do Atlântico – navio que deixaria a Itália para ancorar no Brasil. Vovô
era branco. Num país de misturas, somos resultados de um todo que se explica, mas nem sempre se
entende; caminhos atravessados pelo amor, mas também pela dor.
Em 1888, naquele 13 de Maio, a notícia era de que a escravidão deixaria de existir, no entanto, 135
anos mais tarde, a quantas correntes estamos presos? Os grilhões da antiga – e moderna –
escravidão ainda impedem homens e mulheres de serem, definitivamente, livres… e, pelas amarras
de outrora, há danos a serem reparados.
“...havia espécie diferente de alegria naquele momento. Cheguei, reverenciei o templo, a
simbologia que carrega, e aguardei, paciente, o início da reza. O som do tambor rompeu o
silêncio concretado das paredes daquela igreja e se fizeram preces em festa, com cores,
danças, flores; orações assuntas aos céus”.
As compensações legais arquitetadas para tentar minimizar os impactos da violência racial não são
suficientes para recompor, refazer a história, entretanto possuem a nobre missão de demonstrar que
há o reconhecimento a quem verteu sangue, injustamente, para suprir os caprichos de uma
sociedade cuja “época lhes permitia” tal comportamento. Embora haja, neste texto, o desejo de
manter no passado o preconceito, como se, exatamente, ao tempo estivesse entrelaçado, pesaroso
admitir que não, notar no agora a invasão da ignorância – a mesma foice mutiladora, capaz de
aleijar homens e sonhos.
“...por volta de meio dia, Sol quente, na rua estreita de paralelepípedos, avistei-os, uns vinte
ou trinta, cantando com voz forte, vestidos de branco e com espécie de estacas nas mãos,
vinham subindo a ladeira. Pararam em filas, uns em frente aos outros, ergueram os pedaços
de madeira e iniciaram o que me pareceu ser uma dança. Só mais tarde viria entender que era
um encontro de “jornaleiros”, batendo suas flechas, rendendo homenagens a São Sebastião”.
Existe uma lacuna na compreensão da diversidade, do que é plural, sobretudo quando observadas
em pessoas circunscritas num mesmo espaço geográfico, caracterizada por costumes, hábitos
sociais ou crenças que, naturalmente, variam de uma pessoa para outra. No meio do caminho da
diversidade tem uma pedra – a intolerância – difícil de ser removida, porque sua base está calcada
no individualismo, cuja plataforma é o desrespeito.
“Na entrada, ainda sem entender a grandeza daquele lugar, olhei para a esquerda e vi o que,
mais tarde, me disseram ser um assentamento de Exu. Avancei pelas escadas; no último
degrau me esperava, toda de branco, quem me daria um forte abraço acolhedor. Sorrimos. À
direita, no centro do barracão, o ireasè enfeitado para Iansã anunciava que naquela noite
haveria saída de santo; era festa ao som dos atabaques!”.
Covardia é não se permitir a reflexão, seguindo, sem freios, o discurso cego do ódio, sem a
compreensão demandada pela pluralidade que cerca o ser humano. Tendo votado em si mesmo, o
homem elegeu-se dono da verdade, cujo poder – emanado de si para si – é deter a capacidade de
dizer sobre o que é certo ou errado e, assim, julgar e condenar aquilo que, sendo diferente, afeta
suas mais profundas inseguranças. A fortaleza invisível que impede o pensar, também se ergue, em
muros altos, distanciando o homem de sua própria identidade.
“...parecia ser apenas mais uma manhã como qualquer outra. Fomos ao Bairro Nova Brasília
para falar sobre trabalho; entre uma conversa e outra, gritou aos meus olhos, pendurados
pouco acima da cabeça uns colares com miçangas coloridas. Perguntei se eu poderia usar, se
não faltaria com respeito por não ser da religião. Ela me respondeu que não. A conversa
seguiu outros caminhos. Tempo depois, chega o marido, também dono da casa. Ele se
apresenta, sorri e, sem qualquer explicação, me entrega um daqueles colares: toma, é um
presente pra você! Era guia de Xangô. Imediatamente, meus olhos se encheram de lágrimas;
uma emoção instantânea me tomou. Naquela manhã, apesar de não saber, recebi a cura que
somente eu sabia que precisava: Obá Kaô Kabecilê, Xangô!"
("Ode à Cultura Popular" - especial em homenagem ao Dia Internacional contra a Discriminação Racial e Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé).
Valquiria Rigon Volpato
21 de março de 2023.
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