Os porquês

"...a fome é interior; o que buscamos alimentar é o que somos."


Anos atrás, deitada em minha cama, num desses domingos sem nada para fazer, rolando o feed das redes sociais, me deparei com um episódio qualquer do reality show norte-americano My 600-lb Life — no Brasil, conhecido como Quilos Mortais. Evidente que, num primeiro momento, entrei em choque ao ver a imagem de um homem extremamente gordo, imóvel sobre a cama, totalmente dependente de sua esposa, que o limpava com panos úmidos pela manhã e, em seguida, o alimentava com quantidades enormes de fritas, frango empanado e refrigerante.

Infelizmente, o que me capturou foi aquela imagem. Todavia, para minha sorte, segui assistindo ao episódio — e foi assim que passei a me interessar por outros aspectos: os porquês.

O programa mostrava a rotina do homem e sua jornada rumo ao bypass gástrico — uma espécie de cirurgia bariátrica que cria uma pequena bolsa no estômago e a conecta diretamente ao intestino delgado, desviando o restante do órgão. A meta era chegar ao consultório do Dr. Younan Nowzaradan para pesagem e consulta, momento em que o médico investigava as causas da compulsão alimentar, entregava uma dieta restritiva de 1.200 calorias e encaminhava o paciente ao acompanhamento psicológico.

Na oportunidade, o homem, de aproximadamente 500 quilos, chorava ao lembrar sua infância: o abandono paterno e os abusos sexuais sofridos por parte de um familiar. Ato contínuo, falava sobre a comida — e como ela se tornara sua companhia nos momentos de solidão, medo e angústia; como os sabores — hoje tão falados hiper palatáveis — tornaram-se seu lugar seguro, confortável. Para se proteger das violências, ele comia; para se sentir bem, ele comia; para ter ajuda, ele comia; para se sentir amado, ele comia. A mesma comida que, anos mais tarde, o mataria, foi a que o amou. Essa era a conexão estabelecida à época.

Comfort food — ou “comida afetiva”, em tradução livre — proporciona sensações de bem-estar, nostalgia e conforto emocional, geralmente ligadas a memórias afetivas e experiências pessoais: casa de mãe, pãozinho com manteiga fresquinho na padaria, café coado na hora, broa de milho da roça... Para a maioria de nós, é isso que representa; para aquele homem, à sua maneira, também.

Numa segunda-feira qualquer — desses dias em que a gente não consegue sossegar o coração e se deixa transbordar em lágrimas — almocei no shopping. Escolhi um prato de fast food e, na primeira garfada, a alta concentração de sódio e tantos outros condimentos despertaram minhas papilas e as inundaram de um súbito prazer. De repente, o sabor me fez esboçar, entre lágrimas, um sorriso.

Talvez seja isso: no fundo, todos temos um alimento que nos conforta e, ao mesmo tempo, nos consome — tentando preencher ausências com sabores, temperando o vazio com esperanças. Há dores escondidas que se servem de silêncios, em pratos cheios de indiferença. Não há lugar seguro quando esquecemos que a verdadeira nutrição vem do encontro — com o outro, com a vida, com aquilo que ainda somos capazes de sentir.

Valquiria Rigon Volpato
07 de outubro de 2025

Comentários

  1. Excelente análise da mente humana, nosso hábito de preencher vazios com o que não é o correto ou indicado. Vazios que continuam vazios...

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  2. Excelente texto! O ser humano e seu hábito de preencher vazios apenas com o que preenche o corpo.

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  3. Que escrita maravilhosa, e me vj muito no texto sinto conforto em sabores e muitas vezes exagero em querer sentir mais e mais

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