...e
foram só “dois dedinhos de prosa”. Tão rápido quanto engolir o café já nem tão
quente. Entre um pensamento e outro, a conversa ligeira e lisonjeira ao passado
que ficara para trás. Expressão saudosa, lembrando-se do que ficou parado em
algum lugar no tempo, sorria vez ou outra contando com alegria peripécias que
viveu. Falava com ardor ímpar sobre as noites e como as via chegar ao fim; das
bebidas e bebedeiras. Impregnado do perfume barato misturado ao cigarro, ao
álcool, voltava para casa exalando felicidade boêmia, caminhando com passos
tortos e olhos miúdos, mas que cintilavam à luz
amarelo-alaranjada-incandescente dos postes encontrados rua a fora.
De volta,
cabeça pesada sobre o travesseiro, encerrava ali a jornada noturna, sem sonhos,
sem reflexos e reflexões, espécie de ponto final, dormia. Nada mais. Pausa. Outra lembrança. Um umidificar de olhos, quem sabe. Continuou. Mais
histórias, mais intimidade com a madrugada – não falou sobre o dia; ignorou –,
queria mesmo era sentir a noite, sua fervura incomum e, como se fosse possível,
durante aquela narrativa, novamente apropriar-se dela, fazê-la sua amante uma
vez mais. E como a amou! Imerso nas memórias que trazia à tona, mergulhava
suavemente naquele mar de recordações, sem cautelas, sem receios, não temia o
farfalhar das ondas, pois já as tinha superado, já as conhecia em detalhes; não
ofereciam perigo... Entorpeciam-no de saudades.
Pouco a pouco, diminuiu o ritmo
e como se cansado estivesse, sentou-se à beira da estrada da vida, à sombra da
idade. Agora o sorriso tinha traços bem marcados, sulcados na face enrugada,
deixando, assim, para sempre assinalada a fotografia, a tela que reproduzira,
instantaneamente, naqueles “dois dedos de prosa”. Silencioso, voltou a si,
retomando o olhar antes preso às imagens que bailavam à sua frente, enquanto
saboreava de novo aqueles momentos tão adocicados. O riso foi contido e logo
substituído pelo côncavo triste do envergar de lábios... Ele se dera conta de
que, apesar de sua excitante projeção, tudo havia ficado para trás; todo aquele
movimento de cores e perfumes ficou, caprichosamente, imóvel. Refém de si mesmo
e da saudade que o invadira, preferiu desconversar, teve medo que a lágrima recém-formada
caísse, evidenciando uma fragilidade que não desejava compartilhar.
Com o último
gole de café, ele também se foi. Assim como fazia quando regressava das noites,
repousou a cabeça, os agora alvos cabelos, sobre aquele nostálgico amontoado de reticências.
Livrou-se de tudo. Empacotou a vida que queria reviver e seguiu em frente,
vivendo como se não soubesse, se não quisesse, se não desejasse, se não
pudesse, se não sentisse. Escolheu enganar-se.
...
Talvez doesse menos... Ou, talvez, doesse ainda
mais.
Valquiria Rigon Volpato
16 de junho de 2014
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