"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

segunda-feira, 29 de maio de 2017

O doce perfume da infância

... descobri que gosto do cheiro do leite. Por duas vezes me surpreendi retirando a caneca de louça do microondas e respirando o aroma do leite quente. O cheiro do leite puro, quente, causou-me sensação boa, conforto, talvez até um gosto de infância. Usando das permissões diárias, aquelas nem tão úteis que damos a nós mesmos, contudo necessárias, permiti-me viver e apreciar alguns minutos contemplativos, dedicados ao leite. Refleti momentos de vida em que ele foi protagonista...

Minha mãe não foi daquelas que praticou o desmame. Resistiu firme e me permitiu mamar até os três anos! Mamava de pé. Nem sei se ela ainda tinha leite para me oferecer... Hoje sei que deveria ter dado descanso a ela, tadinha, mas também serei eternamente grata por ter me permitido experimentar o amor em forma de leite por tanto tempo...

Quando criança, morando na roça, lembro-me de que todos os dias havia leite sobre a mesa; era leite fresco, recém ordenhado, que vinha num galãozinho metálico. Papai ou mamãe buscavam o leite no curral, próximo a casa de vovó e o traziam para casa. Eu tinha fama de "bezerrinha", pois aqueles litros, cinco mais ou menos, eram insuficientes e, no outro dia, lá ia papai buscar mais leite!

Outro episódio inesquecível: vez ou outra, quando era meu pai quem ia "tirar o leite", tirar o leite da vaca, porque era assim que falávamos, eu costumava ir com ele até o curral e às vezes ele permitia que eu tentasse tirar o leite... mas preciso confessar... que péssima ordenhadora eu era! Aos seis anos de idade, por aí, tinha boa vontade, mas nenhum jeito!

Como se fosse hoje - agora - lembro-me claramente dos dias de Semana Santa. Morávamos em outro lugar, mas sempre na roça, e na manhã de quinta-feira várias pessoas apareciam cedinho em casa para buscar o leite do canjicão. Nessa época nós tínhamos bom rebanho e para mim era alegria dividir o leite com a comunidade... As vasilhas saíam cheinhas daquele leite... tão branco, mas isso não impedia de que, cada um dos que iam até nossa casa, também tomassem café com uma fatia de queijo ou "puína". Nossa semana se tornava mais Santa assim... repartindo.

Há alguns dias retomei a rotina de beber leite diariamente; há dois dias o cheiro do leite aquecido me cativou. Percebi, entretanto, que não é o cheiro do leite... trata-se do perfume das lembranças, da simplicidade da vida sem pressa. Percebi saudade... fitei novamente, com carinho, as memórias puras associadas àquele que sempre fez parte de mim. O leite alimentou meu corpo, saciou a fome; o mesmo leite, descobri, também alimentou em mim as mais doces experiências... as mais doces lembranças.


Valquiria Rigon Volpato
17 de maio de 2017

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