"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

terça-feira, 30 de junho de 2020

Cheirava saudade...

Posso descrever, exatamente, como estava da última vez que a vi. Havia um sofá caramelo na varanda dos fundos, onde se podia ver a rua pouco movimentada; duas samambaias penduradas num dos caibros do canto superior direito, próximo ao portão de madeira. Porta e janela abertas. A brisa leve se encarregava de refrescar o dia de outono, espalhando folhas soltas pelo ar, movimentos pouco sincronizados - cada uma a sua maneira buscando encontrar onde pousar. Foi ali, bem ali naquela cena onde a vi pela última vez.

A face serena se conectava ao corpo em repouso sentada na mesma posição de dias atrás, uma semana talvez. Em suas mãos mantinha seguro um livro e meu desejo, por várias vezes, era saber seu título, como deveria se chamar a reunião do conteúdo daquelas páginas objeto de tamanho cuidado e dedicada leitura. Por mais de uma vez diminuí o passo, “lerdei” a caminhada para, quem sabe, de alguma forma, apertar os olhos e então reconhecer uma letra, sílaba, algo que me fizesse capaz de deduzir, dando-me satisfeita por fim.

Era comum vê-la compondo quadro de tamanha nostalgia. Por vezes senti no vento o cheiro de saudade, assim como se sente cheiro de bolo saindo do forno, de café recém coado. Era cheiro de saudade. Respirava mais fundo e percebia que, nem todo dia, o perfume tinha as mesmas características - doce nas manhãs, amargo ao anoitecer. Ela ficava mais para o lado esquerdo, gostava de apoiar o braço sobre o braço do sofá, acredito fosse uma forma de ter companhia; sempre sozinha, assim eu a via e vi naquele último entardecer.

Aconteceu de o outono partir e dar lugar ao inverno, com dias mais frios, úmidos. O destaque, agora, era para a manta que lhe cobria as pernas; o livro ainda estava em suas mãos, embora dividisse espaços entremeados à xícara grande - dela esfumava vapor que, rapidamente, unia-se à atmosfera. Não sabia nada sobre ela e, ao mesmo tempo, podia descrever com detalhes sua rotina naquela varanda. Sem saber o nome daquela mulher, batizei-a “Esperança”. 

Chovia forte naquele dia, por volta de dezesseis horas, o frio aumentara, mas, ainda assim, aquele era o escolhido momento para, enfim, perguntar à Esperança o que lia, último mistério a ser desvendado. Capa de chuva, botas, passei pela varanda e não a vi. No dia anterior estava ali, como agora havia desaparecido?

Nada ficou do mesmo jeito, nem mesmo as samambaias do canto superior direito. Fecharam porta e janela, colocaram cadeado no portão. Não sei o que foi feito do sofá caramelo, tão pouco do tempo que perdi observando sem nada dizer. O livro. Tive de me acostumar a não saber como se chamava. Resolvi inventar, dei a ele o mesmo título dum outro livro que li na infância: “Por trás do silêncio”.

Naquele ano, esperança foi-se embora e, a primavera, não veio...



Cachoeiro de Itapemirim - ES, 02 de outubro de 2019
Valquiria Rigon Volpato

Um comentário:

  1. Conterranea Walquiria é sempre um espetaculo ler seus escritos, sua sensibilidade transcente a tudo, e invade nossa alma. Parabéns!!

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