"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Esfinge

A impressão era de que ser humano não seria fácil, mas descobri algo mais complexo do que somente a humanidade; nasci mulher. E a mulher em mim resolveu não seguir regras, decidiu não caber no padrão, ela quis acontecer e se transformou num evento, repleto de sons – e silêncios – de cores pronunciadas, alegria incontida, desafiadora… transgressora. A mulher em mim rompeu o vagido – deu vasão ao grito – e trouxe à tona medos e inseguranças, por vezes descabidas, fruto de sementes lançadas na vã tentativa de fazer do terreno interno – mente e coração – lavoura conhecida, como tantas, sem surpresas. Talvez, o conhecido transmita a sensação de lida fácil. Já se sabe quais são os invasores e, para cada um deles, o defensivo previsto, a fórmula química testada. Segura. O homem não é simples, e à “mulher-humano” pede-se para ser mais. A mim foi pedido.

Quando, de cara comigo, no espelho, permiti o reconhecimento facial além pele, pelos e mucosas, a cena deixou de ser reflexo e passou a ser reflexão. Quem era o eu refletido? A mulher refletida… O choque ao me perceber, embora libertador, em outros contornos, ali estaria minha prisão; as cordas tensionadas por uma constrangedora liberdade. Com a velocidade orquestral da batuta empunhada pelo maestro, a sinfonia seguia entusiasmante; notas tênues contrastando, harmoniosas, com outras de vibrato intenso. Era a “mulher-composição” sendo cantada, tocada em acordes produzidos para sua particular melodia.

Lancinante, a inóspita confusão criada, mantinha-se em plena ebulição, arrebentando em estilhaços, cacos de sentimentos, que ao serem apanhados formavam novo texto. Em prosa o alinhavo para a narrativa interior e, agora, o livro infantil parecia não mais fazer qualquer sentido, talvez porque, àquela altura, a inocência necessária haveria se perdido. Tarde demais, a mulher em mim passara a ter métrica, versos, estrofes, um soneto de construção arrojada – lindíssimo, admirado, exaustivamente, lido – e quase nunca compreendido.

Decifra-me. Devoro-te. Cobiça a resposta para o enigma da esfinge, todavia teme; traz a reboque os achismos e por não haver certeza entre eles, titubeia, deixa que o medo ceife a oportunidade. Devoro-te? Não há castigo – ambos são bênçãos. Decifra-me! E queira ser devorado ainda assim. Ondas vêm à praia e nela encontram sua nova forma; arrebentam-se. Espumas flutuantes perfumam de maresia teus cabelos, invadem a alma quando, repentinamente, acariciam teus pés e não há mais quente ou frio – tudo está condensado – retornando, manso, à imensidão do mar. Oceânica, a mulher se encontra com o azul do céu e se perde na linha do horizonte.




Cachoeiro de Itapemirim, ES, 24 de junho de 2020
Valquiria Rigon Volpato

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